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Opinião|Um réu ‘in heaven’

Renan tangencia o nirvana congressional. O problema é que o céu dele é o nosso inferno

Atualização:

Uma fotografia no alto da primeira página do Estado de ontem deveria render um prêmio de jornalismo a Dida Sampaio. Em close, o ainda presidente do Senado – ao menos até o momento em que fecho este artigo, ao meio-dia de quarta-feira – tem um ar de beatitude. Sem ironia: beatitude. Não chega a ser um êxtase gozoso, como aquele que embaraça o espectador no semblante de Santa Teresa de Ávila, esculpida por Gian Lorenzo Bernini, no século 17. A santa barroca fascina e seduz, com um ar de transverberação que combina notas místicas a contrapontos sexuais. Não é esse, evidentemente, o caso do político do PMDB alagoano.

Sua beatitude é menos transcendente e mais pragmática. Diferentemente do mármore católico, ele não flutua em ondas de prazeres celestiais, apenas se embriaga de uma esperteza zen; na disputa selvagem de um jogo cujas regras se esboroam, encontra uma paz de espírito improvável e, não obstante, convincente.

Renan Calheiros tangencia o nirvana congressional. A imagem não deixa dúvidas. Olhos semicerrados – aí, sim, como os de Santa Teresa –, esboça um sorriso retilíneo, quase como um iogue prestes a embarcar na meditação. Não se vê tensão nos músculos faciais do cacique. Ele está calmo, quase em ataraxia, embora dele não se possa dizer que seja um epicurista. Para o grego Epicuro (341-270 a.C.), que veio logo depois de Aristóteles e ensinava a seus discípulos num jardim, afastado do centro nervoso da pólis, a ataraxia manifestava-se na imperturbabilidade da alma e na ausência de inquietude. É bem verdade que o atual esboroamento das instituições republicanas, que tombam em câmera lenta, batendo-se umas contra as outras, faz lembrar o período helenístico em que Epicuro viveu, marcado pelo declínio, pela desmoralização e pela falência política das cidades-Estado, que terminam por se dobrar ao domínio macedônio. Mas fora isso não há paralelos confiáveis entre os ensinamentos do filósofo materialista, seguidor de Demócrito, e a impassividade amena do rosto no jornal.

Epicuro acreditava que, em meio ao desmantelamento do poder da pólis, só a ataraxia poderia preservar a razão e fortalecer o espírito. Aos seus alunos, “receitava” o “tetrafármaco” filosófico: “Não há que temer os deuses, não há que temer a morte, toda dor se pode suportar, a felicidade se pode alcançar”. Renan não é um epicurista, vamos repetir, mas não temeu a morte política que lhe foi vaticinada por um ministro do Supremo, assim como não teme os semideuses togados que o vigiam. Além disso, suporta como ninguém a dor moral de ser o réu mais odiado do Brasil e na sua batalha sem causas grandiosas encontrou a felicidade.

E a iluminação. A foto de Dida Sampaio é que diz. Uma claridade lateral faz os cabelos grisalhos do senador resplandecerem sobre a têmpora direita. Ao alto, um halo mais discreto também se acende nas franjas do topete implantando e, à direita, um tênue contraluz completa o que se desenha como uma auréola em primeiro nível. A auréola replica-se num segundo nível, desta vez conformada por uma elipse de microfones que, na base da fotografia, contornam o rosto em foco. São 11 microfones (numa contagem impressionista), quase todos com o logotipo das emissoras mais conhecidas.

O recurso da auréola nas pinturas medievais realçava a santidade dos tipos retratados, colocando-os como centro de energias cósmicas que os gravitavam em luminescências mágicas. Pois assim está Renan na capa do Estadão de ontem: ele é o centro das energias conturbadas da opinião pública e das luzes que fraquejam na República. Não nos esqueçamos de que o fundo da foto é escuro, é preto, é o puro breu, o que também significa muita coisa: ao fundo do réu tranquilo, a não ser por duas fontes de luz que se insinuam por detrás de sua orelha esquerda, como duas luas em poente, fora de foco, só o que se divisa é a treva.

A imagem contém um presságio: além de Calheiros, a escuridão. O seu semblante fala francês: “Après moi le déluge”. Quer dizer: depois de mim, nuvens mais carregadas ainda, desastres mais trágicos ainda, mais trovões, vendavais, inundações e mais trevas. Correu até um boato de que aquele que deveria substituí-lo, caso ele cumprisse a ordem judicial e se retirasse do posto que ocupa, teria declarado não ter condições de assumir-lhe o lugar. Ou seja, depois de Renan, mais ninguém.

Talvez por isso a placidez serena daquele rosto na foto exale tanta confiança. O homem transmite a mansa segurança de que não pode ser alcançado pela decisão que contra ele foi disparada do prédio vizinho. Seu sorriso, um sorriso de Mona Lisa máscula e sagaz, indica que, embora esteja lá, visível, ao alcance dos olhos, o político retratado está, na verdade, mais longe, fora da linha de tiro.

Uma trilha sonora, então, bate às portas das margens da fotografia, pedindo para ser ouvida. O verso “heaven, I’m in heaven” ecoa na cabeça do leitor sem que ele se dê conta. A canção de Irving Berlin, na voz de Fred Astaire, ressoa como a melhor tradução – num contraponto, agora, sim, irônico e anacrônico – para o estado de espírito que a lente do fotógrafo fisgou. Renan Calheiros, que coisa espantosa, parece estar no céu.

O problema é que o céu dele é o inferno da gente.

Na mesma capa do Estadão de ontem, outra fotografia, esta de Wilton Junior, mostra a “batalha campal” e a “praça de guerra” – expressões pinçadas da legenda – em que se converteu o centro da cidade do Rio de Janeiro com os protestos contra o tal “pacote de austeridade” do governador Pezão. Um rastilho de fumaça corta a base da imagem de fora a fora. Um pouco acima, um manifestante solitário se desloca sob o sol. Ao fundo, labaredas tomam o asfalto e incendeiam a fúria de uma pequena multidão.

Acima, o presidente do Senado sorri em paz, mas o dia ainda reserva surpresas. Ou não.

*Jornalista, é professor da ECA-USP