Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Uma autorização perigosa

A nova lei autoriza a União a bloquear bens de devedores sem ordem judicial

Exclusivo para assinantes
Por Redação
2 min de leitura

Recentemente foi publicada a Lei 13.606/18, que trata do “Programa de Regularização Tributária Rural” para as dívidas relativas ao Funrural. Controvertido, o projeto de lei teve vários dispositivos vetados pelo presidente Michel Temer, que retirou alguns de seus principais excessos. Por exemplo, o desconto integral das multas foi excluído do texto final.

Permaneceu, no entanto, no bojo da Lei 13.606/18 um verdadeiro absurdo jurídico, que não apresenta relação com o tema do projeto de lei, o parcelamento das dívidas do Funrural. A nova lei autoriza a União a bloquear bens de devedores sem ordem judicial. A impressão é de que a excrescência, que se encontra no art. 25 da Lei 13.606/18, foi feita para ser aprovada sorrateiramente, esquivando-se das naturais resistências que o assunto suscitaria. Na exposição de motivos do projeto de lei, por exemplo, não há qualquer menção ao assunto.

Em vigor desde a data de sua publicação, o texto assim estabelece: “Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados. (...) Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá: I - comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e II - averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis”.

Como se vê, a Lei 13.606/18 permite que a União bloqueie bens de devedores sem a necessidade de autorização de um juiz. Uma vez inscrito na Dívida Ativa da União, o devedor poderá ter seus bens – um carro ou um imóvel, por exemplo – decretados indisponíveis, sem qualquer ordem judicial. O procedimento é sumário: basta que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) notifique o devedor. Caso não haja o pagamento em cinco dias, os bens deste cidadão poderão ser bloqueados por mero ato da União, tornando-os assim indisponíveis para a venda.

A Lei 13.606/18 ainda estabelece que caberá à PGFN a regulamentação do procedimento de notificação e bloqueio, com a edição dos “atos complementares” que se fizerem necessários para o cumprimento integral dos novos dispositivos. Além de dar à União o poder de bloquear bens de devedores em sede administrativa e de forma unilateral, a lei define que é a própria União quem disporá sobre o exercício desse poder.

A medida é de uma brutalidade inédita. Sempre foi necessário contar com a autorização judicial para tornar indisponíveis os bens de um devedor. Esse requisito é muito mais do que um simples trâmite burocrático. Trata-se da garantia primária de que o Estado respeita o direito de propriedade e o princípio da ampla defesa.

Não há dúvida, portanto, de que o art. 25 da Lei 13.606/18 é inconstitucional. Ao definir os direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 assegura “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País (art. 5.º). Mais adiante, no inciso XXII, o legislador constituinte volta a frisar que “é garantido o direito de propriedade”.

A Constituição também garante “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral (...) o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5.º, LV). Como se pode dizer que se respeita o direito de defesa no caso de um procedimento no qual, cinco dias após receber uma notificação administrativa, um cidadão pode ter seus bens imediatamente bloqueados por ato da própria administração pública?

Os efeitos da sonegação são deletérios para toda a sociedade. Cabe ao Estado ser especialmente diligente na cobrança dessas dívidas. Sempre, no entanto, dentro da lei.