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Uma disputa sob encomenda

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Por Redação
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Nada como um bom contencioso internacional para alimentar o discurso nacionalista e patriótico do presidente Nicolás Maduro, que tenta com isso aliviar a pressão exercida pela crise profunda que o chavismo provocou na Venezuela. A secular reivindicação territorial sobre um pedaço da vizinha Guiana está sendo retomada agora com renovado vigor, em razão da anunciada descoberta de petróleo naquela região. É uma combinação perfeita para a retórica rastaquera de Maduro: ao suposto roubo do território no século 19, patrocinado pelo Império Britânico, soma-se a exploração “imperialista”.

A reivindicação sobre o território conhecido como Essequibo é um tema que une os venezuelanos. Mesmo uma parte da oposição ao chavismo considera válido exigir a devolução da área, embora tal demanda tenha remotíssimas chances de ser atendida – pois o Essequibo representa nada menos que 62% do território da Guiana. É, portanto, um assunto capaz de mexer com o sentimento do país, razão pela qual, de tempos em tempos, serve a todo tipo de interesse.

O contencioso sobre o Essequibo remonta ao século 19. A atual fronteira entre Venezuela e Guiana foi estabelecida pelos britânicos em 1840. Mas a Venezuela considerava que seus limites se estendiam até o Rio Essequibo, incorporando uma área de 160 mil quilômetros quadrados – em seus mapas atuais, o país chama essa área, que hoje pertence à Guiana, de “Guayana Esequiba”, dizendo tratar-se de região “disputada”.

Em 1894, os Estados Unidos, a pedido dos venezuelanos, sugeriram uma arbitragem internacional – na qual os americanos serviram como advogados da Venezuela. Sem a defesa feita pelos Estados Unidos, que tinham interesse em evitar a expansão britânica na região, a Venezuela teria perdido território até o Rio Orinoco, isto é, metade de sua área atual. Portanto, o resultado da arbitragem, proclamado em 1899, foi razoável para a Venezuela – tanto é assim que os venezuelanos só voltaram a reivindicar o Essequibo em 1949.

Nesse meio tempo, porém, o território já estava ocupado por guianenses de fala inglesa, que hoje não têm intenção de se tornarem cidadãos venezuelanos. Essa realidade, além do fato de que é bastante improvável que a comunidade internacional decida dar a um país mais da metade do território de outro em razão de um suposto erro de arbitragem cometido há mais de um século, torna o pleito venezuelano ainda mais implausível.

Em 1966, Venezuela e Grã-Bretanha (e posteriormente a Guiana independente) se comprometeram a resolver o diferendo em negociações, mas não houve avanços. Em 1980, a Guiana incorporou formalmente o Essequibo a seu território.

Em todo esse tempo, o contencioso foi retomado ou esquecido ao sabor das conveniências políticas. A situação voltou a ficar tensa em março deste ano, quando a Guiana anunciou que a Exxon Mobil começaria a explorar petróleo em águas da região disputada. A Venezuela reagiu, e Maduro, bem a seu estilo, estendeu por decreto a soberania venezuelana às águas da área que reivindica. Com razão, a Guiana protestou, alegando violação do direito internacional e do princípio de que todos os Estados devem respeitar a soberania e a integridade dos demais.

Na última cúpula do Mercosul, o presidente da Guiana, David Granger, queixou-se das provocações venezuelanas e, num encontro bilateral, pediu à presidente Dilma Rousseff que ajudasse na mediação. Maduro quis participar do encontro, mas Dilma não permitiu – no que fez muito bem.

O chefão venezuelano, como se sabe, não se preocupa muito com leis, ordenamento jurídico e rituais diplomáticos quando se trata de preservar as fantasias chavistas. A retomada retumbante do contencioso do Essequibo – em que Maduro diz defender a Venezuela do “imperialismo” americano, mas age ele mesmo como imperialista – expõe toda a sua truculência, inadmissível no concerto das nações civilizadas.