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Uma estranha iniciativa

Não cabe ao Ministério Público o papel de anjo da guarda de governos e de suas empresas públicas

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Por Redação
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Causa espécie a notícia, divulgada no Estado de terça-feira, de que, com o objetivo de evitar uma ação judicial por improbidade administrativa, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) decidiu anular um contrato milionário para manutenção de 48 trens, medida recomendada em agosto pelo Ministério Público Estadual (MPE), por suspeita de fraude na licitação e formação de cartel. Ora, o Ministério Público é instituição autônoma, não integra o Poder Executivo, que controla a estatal, e não é sua função dar palpite sobre a melhor forma de a CPTM lidar com seus problemas administrativos. Por outro lado, a formação de cartel é crime contra a ordem econômica. Constatada sua existência, o que cabe ao MP é propor tanto a competente ação civil pública como o pedido de indiciamento de suspeitos visando à instalação de ação penal.

Em agosto, o promotor Marcelo Milani, da Promotoria do Patrimônio Público e Social, encaminhou à CPTM “recomendação administrativa” pedindo a anulação imediata da licitação e do respectivo contrato, sob a alegação de que o processo de licitação feito em 2012 foi um dos alvos de suposto cartel de trens. Agora, o MPE afirma que “a decisão de anular o contrato é o reconhecimento, por parte da companhia, da existência de fraude e formação de cartel, que atuou em todos os contratos de manutenção da CPTM desde 1998”.

Segundo o promotor Milani, as três empresas que disputaram a licitação da CPTM em 2012 – Temoinsa, Alstom e CAF – já eram parceiras no consórcio que detinha o contrato anterior dos mesmos serviços, assinado em 2007, no valor de R$ 282,2 milhões. Essas empresas, diz o promotor, adotam a prática de contratar umas às outras “com o objetivo de auferir vantagens ilícitas decorrentes das práticas anticoncorrenciais”. Segundo Milani, na licitação de 2012 uma empresa, a TTrans, concorreu sozinha, fora do suposto cartel, perdeu, mas acabou subcontratada pelo consórcio vencedor.

O suposto cartel já foi objeto de duas ações civis públicas propostas pelo MPE entre os anos 2007 e 2012. Em uma dessas ações, ajuizada em 2015, a Promotoria pediu a dissolução de nove grupos empresariais, entre os quais as multinacionais Alstom, CAF do Brasil e Bombardier, e a restituição de cerca de R$ 1 bilhão aos cofres públicos.

Outra multinacional acusada de participar do cartel metroferroviário de São Paulo, a Siemens, em maio de 2013 admitiu a existência desse cartel, entre 1998 e 2008, em acordo de leniência com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Desde então o governo paulista informa que investiga todas as denúncias e tanto o Metrô como a CPTM garantem que colaboram com as investigações. Pelo que se observa agora, contudo, parece que quem está efetivamente administrando a empresa é o Ministério Público Estadual, a julgar pela “recomendação administrativa” de cancelar um contrato para evitar complicações na Justiça.

No mês passado, a CPTM enviou ofício ao promotor Marcelo Milani informando que “cumprirá” o que diz a “recomendação administrativa” de agosto, ou seja, o cancelamento do contrato apontado como fraudulento, “com o intuito de evitar o ajuizamento de ação de improbidade administrativa ou de responsabilidade em face de seus atuais e ex-dirigentes, bem como da própria companhia”. Quer dizer: a própria CPTM admite que sua diretoria poderia ser acusada numa ação penal por improbidade, ação essa cuja iniciativa caberia ao Ministério Público. Mas em vez de investigar os diretores e, se fosse o caso, indiciá-los em processo criminal, o prestativo Ministério Público Estadual de São Paulo preferiu alertar a CPTM do risco que estava correndo.

Definitivamente, não cabe ao Ministério Público o papel de anjo da guarda de governos e de suas empresas públicas. A responsabilidade constitucional precípua dos promotores e procuradores de Justiça é defender a ordem jurídica, o regime democrático e os chamados interesses sociais e individuais indisponíveis.