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Opinião|Uma patologia contemporânea

Vida pública afastada do maniqueísmo não foi possível construir com ‘esta’ esquerda

Atualização:

A polarização da linguagem e do comportamento político neste trecho inicial do século 21 não pode mais ser vista como legado imprestável da guerra fria. Para onde quer que se olhe se desvanece a ilusão de que o arsenal de contraposições simplórias daquela época tenha sido ao menos parcialmente abandonado. Poucos vaticínios tiveram duração tão curta quanto o do “fim da História”. As sociedades continuam divididas, como sempre, processos de alcance incalculável, como a globalização, mudam a face do mundo, mas algo permanece constante: a classificação maniqueísta de velhos e novos problemas e o adensamento da névoa que os recobre.

A Europa bem-sucedida da social-democracia, que soube combinar a democracia política e o Estado de bem-estar social, parece tropeçar sucessivamente na construção de seu projeto de “democracia transnacional”, a boa resposta à inexorável internacionalização dos mercados. E a velha democracia norte-americana, que resiste com maior ou menor êxito ao poder do dinheiro e admite admiráveis governos de centro-esquerda, como o de Obama, vê-se agora assediada por um populismo grosseiro, que requer e fomenta a polarização, tira proveito das “guerras de cultura” e por certo promoverá as guerras propriamente ditas, como é de sua natureza.

O Brasil não poderia ser uma ilha de tranquilidade e menos ainda uma terra naturalmente capaz de produzir uma vida pública saudável e culturas políticas dispostas ao conflito e ao entendimento, à competição, mesmo acirrada, e ao reconhecimento de um terreno comum. Vive-se a crise do impedimento da presidente Dilma Rousseff em meio a uma acusação tremenda: estaríamos assistindo a um golpe de novo tipo, urdido pela mídia monopolista, por setores do Judiciário e pela oposição antipopular e antinacional derrotada nestes 13 anos de poder petista.

Cada uma das situações acima tem particularidades que não se deixam transferir facilmente para um contexto diferente. Na Europa, com o Brexit, a voz autorizada de Habermas diagnosticou uma espécie de recuo conservador, quando não francamente reacionário, para os confins do velho Estado nacional, mesmo solapado na raiz pelos processos “automáticos” da globalização econômica. Para atores com potencial desestabilizador, como os governos direitistas da Hungria e da Polônia, uma nova união europeia só se tornaria viável como justaposição de nações soberanas que privilegiariam antes de mais nada a dimensão militar.

O populismo – constatou o filósofo, surpreso – foi capaz de fincar sua bandeira até na pátria do capitalismo: na Inglaterra, questões “anacrônicas” de identidade nacional triunfaram sobre o interesse, motor por excelência do comportamento político no mundo burguês. E o discurso público, tanto na Inglaterra como no continente, apresenta “traços sociopatológicos de desinibida agressividade política”, típicos de uma sociedade que se unifica economicamente sem que formas transnacionais de representação democrática consigam expressar uma cidadania de novo tipo.

A “desinibida agressividade” dos discursos, com traços sociopatológicos exacerbados pelas redes sociais (ou antissociais...), não é uma particularidade europeia. Ela salta à vista e fere até ouvidos menos sensíveis na campanha americana em curso. Fácil demais centrar fogo nas intervenções provocativas de um Donald Trump, recheadas de xenofobia, sexismo e autoritarismo. Menos evidente é entender o bizarro personagem como o resultado de um percurso partidário que, pelo menos desde Nixon ou mais claramente Reagan, buscou desfazer a América de classe média legada pelo reformismo rooseveltiano e reforçada, nos anos 1960, pelas políticas sociais de Kennedy e Johnson.

Trump é grosseiro, mas, de fato, só leva às últimas consequências, como se tem observado, uma retórica republicana anterior, baseada num “etnonacionalismo branco” ressentido e já minoritário na grande nação americana. Sua grosseria nos desconcerta e até confunde os padrões de análise. Não parece nada preocupado em “buscar o centro”, esse lance estratégico que a grande política apregoa ser necessário para tornar mudanças viáveis e construir equilíbrios mais justos, sem partir ao meio a sociedade.

Mas voltemos ao Brasil. Um exercício penoso será buscar os motivos do esgotamento intelectual – e, portanto, exaustão da capacidade de convencer – da esquerda dominante nos anos da redemocratização. Seria muito fácil, por exemplo, criticar a impressionante série de discursos da presidente Dilma Rousseff, ainda no Planalto, dirigidos estritamente a uma militância inflamada e já previamente convencida. Ou, mais recentemente, esquadrinhar sua carta ao Senado e ao povo. Na narrativa que daí se depreende, o vice-presidente constitucional não passa de “traidor” ou “usurpador”. A denúncia de “golpe” reitera-se à exaustão, como se a reiteração obsessiva a elevasse à condição de argumento. E a luta política reduz-se a palavras de ordem, como se a direita fascista estivesse às portas e só restassem a resistência e a volta às catacumbas.

A verdade é que esses e outros atos delineiam um “inimigo” conveniente. São sintomas de uma esquerda intelectualmente frágil, incapaz de uma desapiedada visão de si mesma, ela que deseducou parcela grande da sociedade quando, na oposição, patrocinou pedidos em série de impeachment e questionou infantilmente a legitimidade de todos os presidentes. Uma esquerda que, como no exemplo americano antípoda, não se mostrou à altura de conquistar o centro, sem tentar destruí-lo, e de efetivamente dirigir o País, renovando-o e contribuindo para a construção de uma vida pública o mais afastada possível da patologia maniqueísta – traço mórbido da crise de nosso tempo. Uma construção que simplesmente não se faz sem o concurso da esquerda, mas não foi possível levar adiante com esta esquerda.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.