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Opinião|A charada intercultural

De afetivos e expansivos nos tornamos defensivos e sisudos, quando não rancorosos

Atualização:

Até o final dos anos 1980, boa parte dos profissionais brasileiros que se aventuravam pelo mundo partia munida de um receituário uniforme para lidar com os diferentes povos. Isso porque, como era então frequente, a imensa maioria de nossos interlocutores na outra ponta se compunha de representantes das culturas latina, anglo-saxã e, a depender do ramo, saudita ou outra ramificação árabe, especialmente para os que daqui tratavam de avicultura, ou mesmo das indústrias bélica, automobilística ou petrolífera.

Com a queda do Muro de Berlim e a inserção da China como ator global, na sequência dos episódios da Praça da Paz Celestial, duas cortinas se abriram. A de ferro, definida por Churchill, e a de bambu. Esses dois fatos por si sós desencadearam energias comparadas às de um enorme sismo. Um fator decorrente foi a chegada de novas nacionalidades em busca de identidade própria – tanto quanto permitiam os laços culturais, políticos e econômicos que as ligavam a Moscou ou, internamente, a Pequim.

Assim, quem conhecia georgianos só pelas notas biográficas de Stalin começou a singrar o Mar Negro para vender-lhes produtos. Decisões cruciais sobre o futuro real ou sonhado não mais eram tomadas no Kremlin e passaram a competir a Budapeste, Bratislava, Sófia ou Baku. Nesse contexto, os quadros de ponta comercial de nossa indústria e nosso agronegócio sentiram a necessidade de saber mais sobre quem, até então, só lhes chegara pela ficção literária.

Na falta de um acervo estruturado de experiências interculturais com povos tão distintos quanto podem ser tailandeses, malaios ou armênios, muitos saíram à procura de parâmetros em Londres ou Amsterdam. Na mente estimulada de traders a caminho de Multan, no Paquistão, ou Bangalore, na Índia, palpitavam as indagações sobre as práticas profissionais, as interferências da religião na rotina, a observância de padrões éticos e humanitários e até dos ritos à mesa na hora do small talk social.

Já nos anos 90, pensadores como Geert Hofstede e Fons Trompenaars, não por acaso egressos do mimetismo holandês, deslindaram categorias de análise que davam parâmetros de navegabilidade a quem estava pisando nas areias quentes do Iraque ou se extasiava nas ruelas de Cracóvia. Ganhava quem não abraçasse acriticamente um receituário enlatado em Harvard ou Fontainebleau. Isso porque, a partir de uma vivência de campo, tinha como criar um tipo de proximidade emocional com seus clientes que americanos e franceses nem sempre logravam.

Se somarmos às contribuições de ambos os estudos do inglês Richard Lewis – ex-tutor da família imperial japonesa –, concluiremos que é salutar atentar para a distância de poder, um coeficiente que atesta em que medida uma cultura é mais igualitarista que outra. É óbvio que os países escandinavos pontuam baixo no quesito, dada a informalidade com que se tratam súditos e monarcas, que passeiam de bicicleta em Oslo ou Estocolmo. Em Casablanca ou Kinshasa, tais práticas seriam impensáveis.

Em igual medida, a aplicação da lei para todos, verificável no primeiro grupo, perde tração, ou some por completo, no caso de teocracias e regimes discricionários. Sendo muitos os itens que comporiam esse arrazoado, que varreria da noção de fatalismo que encerra o maktub e o insha’Allah ao pragmatismo de “tempo é dinheiro”, prevalente em Chicago, convém atentar para um aspecto que vem sendo subvertido entre nós, no oitavo mês do governo Bolsonaro.

Ora, segundo as conceituações acima, somos um povo multiativo, ou seja, fazemos várias coisas ao mesmo tempo, com razoável risco de dispersão. Consoante a região e a atividade, estaríamos a meio caminho entre reativos, caso de finlandeses ou japoneses, e ativo-lineares, como o grosso dos anglo-saxões. O que os distingue? Fazer uma coisa depois da outra, consoante as prioridades; manter o foco e avançar todo dia.

Isso se explica porque, segundo essa leitura, o tempo não obedece a uma lógica circular, em que podemos fazer amanhã, impunemente, o dever de hoje. Se em latitudes levantinas o tempo pertence a Deus, daí o desprestígio do planejamento, é forçoso constatar que tiveram mais sucesso em fazer e distribuir riqueza os povos que se assenhorearam de seu destino, exercendo controle interno, nem que tenham tido de travar duelo desigual com a natureza, como fizeram nipônicos e helvéticos.

Quer se queira ou não, o Brasil é ator de primeira grandeza no bloco civilizacional a que pertence. De segunda classe – parte por azar genérico e parte por incúria – na economia mundial. E de terceira categoria entre as nações de ponta, estribadas em vetores de tecnologia e de produtividade. Tendo uma luta fratricida a travar contra o atraso e os cacoetes da gestão viciada em várias esferas, soa patético o repertório propositivo do Executivo que afronta o primado ativo-linear da agenda mundial, em favor de dispersões gratuitas.

Assim sendo, diatribes como as que contemplam a pontuação da CNH, as cadeirinhas de bebê e até a surreal tomada de três pinos desnudam a falta do norte. Se o que era para ter sido feito ontem não o é hoje, e pouco indica que será feito amanhã, o que acontece? Condenamos os que podem desencadear nossas melhores energias em prol do futuro a ser reativos em face da postura do Executivo de confiar o amanhã, retoricamente, a Deus. Tudo isso nos tem trazido percalços candentes.

Não é difícil de imaginar o que diriam os professores acima diante do Brasil que se deslinda. De afetivos e expansivos, tornamo-nos defensivos e sisudos, quando não rancorosos. Se a felicidade é uma abstração que não se vende a granel, já tivemos mancheias de alegria. Perdidos num labirinto, parece que um espírito sádico pendurou placas de sinalização truncada, que desorientam todos indistintamente. Sem utopia para chamar de nossa, é compreensível a sombra de Sísifo que se abate sobre a Nação. Mas é sempre tempo para tudo. Como sabemos, até para nada.

*AUTOR DE ‘CARTA A PORTUGAL’ (GLACIAR, LISBOA, 2019). 

Opinião por Fernando Dourado Filho