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Opinião|A difícil tarefa de acordar preto no Brasil

É necessário olharmos para a questão dos homicídios entre crianças e jovens negros no País com maior preocupação

Atualização:

Existe um vídeo infame, que há muito circula pela internet, de um vereador de Caruaru, no interior pernambucano, que, ao discursar no plenário da Câmara da cidade, lamenta aos colegas a morte de um conhecido. “Ele foi dormir e, quando acordou, estava morto”, noticiou o parlamentar, para espanto e riso de toda a gente que o ouvia. Ainda que “acordar morto” seja uma condição um tanto quanto impossível, há na realidade brasileira um estado de existência muito semelhante, ou quase idêntico, que é acordar preto.

Para a população negra, levantar da cama ao amanhecer é o primeiro de muitos pequenos atos de sobrevivência – se é que qualquer ato de sobrevivência pode ser chamado de pequeno –, numa jornada de sucessivas provocações, como alguém que pede licença para simplesmente ser o que é.

Esse é um fadário do qual poucos escapam, mas que tem sobretudo sido mais agudo na infância e na adolescência. Levantamento realizado recentemente pela ONG Visão Mundial mostrou que, de 2009 a 2019, foram mortas 107.670 crianças e adolescentes em todo o território nacional, vítimas de homicídio. A estatística por si já é espantosa, mas torna-se ainda mais assustadora quando revela que, deste total de assassinatos, 76% foram de crianças e jovens negros.

Essa proporção vem crescendo no decorrer do tempo: em 2009, negros e negras eram 71% das vítimas, enquanto 11 anos depois passaram a ser 81%, ao passo que a proporção de vítimas brancas tem sido reduzida: em 2009 eram 23% e, em 2019, passaram a ser 17% dos mortos.

As desigualdades acompanham as vidas negras desde a concepção e o nascimento: durante o pré-natal, 32% das gestantes negras não fazem todos os exames recomendados – entre as mulheres brancas, esse porcentual é de 19%, segundo dados divulgados pela Fundação Abrinq. O levantamento ainda aponta que a mortalidade infantil no primeiro ano de vida é 22,5% maior entre crianças negras, enquanto 2 em cada 3 mortes maternas são de mulheres negras.

A equação da mortalidade da população negra, sabemos, é complexa. Mas, como toda equação tem no mínimo uma variável, sabemos também que no caso brasileiro ela ainda apresenta um elemento invariável: a desigualdade, que está na raiz deste e de tantos problemas que tiranizam a vida de quem não é rico, branco e bem instruído.

A desigualdade vem crescendo no Brasil nos últimos anos, mais do que na média das outras nações, como apontou uma pesquisa recente da Fundação Getúlio Vargas. Segundo o levantamento, a satisfação dos 40% mais pobres caiu 22% no País em relação à educação, e 10,5% no que diz respeito à saúde. E, como os negros são 75% entre os mais pobres e 27% dos mais ricos – conforme números oficiais do próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, não fica difícil de concluir que, quanto mais a desigualdade se expande em nosso território, menos espaço a população negra tem para sobreviver.

Esses e vários outros dados, além da própria realidade observável, informam a necessidade de olharmos para a questão dos homicídios entre crianças e jovens negros no Brasil com maior preocupação com que a matéria vem sendo suscitada no debate público nos últimos anos, porque a vida dessas pessoas continua sendo ameaçada dia após dia. Uma ameaça às vezes sorrateira, às vezes descarada, mas sempre uma ameaça presente e constante, como um cozimento longo em banho-maria.

É importante destacar que essa é uma problemática que necessita ser discutida num plano nacional, pois, ainda que existam realidades regionais, com o Norte e o Nordeste em situação mais precária no enfrentamento de homicídios na infância e na juventude, este é um problema do Brasil. A boa notícia é que existem conhecimento, gente empenhada e uma sociedade civil organizada apta para fazer a mudança acontecer.

Uma das propostas que colocamos à mesa do debate público é a criação de um Comitê Nacional de Enfrentamento aos Homicídios de Crianças e Adolescentes, e que lhe sejam garantidos os recursos financeiros necessários para a sua implementação, com a participação de órgãos públicos e da sociedade civil, interagindo para que possamos ter uma política não apenas de governo, mas de Estado, buscando por soluções efetivas para o fim, urgente, da violência letal contra os mais indefesos.

Como num estado quântico de sobreposição em que se é e não é ao mesmo tempo, desde pequena a população negra se confronta com a situação sui generis de fazer parte da sociedade brasileira sem, no entanto, realmente integrá-la, numa lógica schrödingerniana e cruel.

Assim como o gato no famoso experimento do teórico austríaco Erwin Schrödinger, crianças e adolescentes negros, ao mesmo tempo, estão vivos e mortos, vagando por um País ainda indeciso sobre qual caminho seria o melhor.

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DIRETOR DE ADVOCACY E RELAÇÕES INSTITUCIONAIS DA ONG VISÃO MUNDIAL, É MEMBRO DA PRIMEIRA COMISSÃO NACIONAL DE ACOMPANHAMENTO DA IMPLEMENTAÇÃO DOS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL (ODS) NO BRASIL

Opinião por Welinton Pereira