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Opinião|A escalada da guerra na Ucrânia

As ameaças de Putin, ainda que não se concretizem, poderão gerar uma nova corrida armamentista, desta vez de artefatos nucleares táticos.

Atualização:

Clausewitz, o grande estrategista militar prussiano do século 19, afirmava que a lógica da guerra é a escalada aos extremos. É o que estamos assistindo hoje no conflito na Ucrânia.

Em sua declaração de guerra de 24 de fevereiro, depois de relembrar os antecedentes históricos da invasão da Ucrânia, o presidente russo deixou uma ameaça no ar: se alguém interviesse na invasão das tropas russas ao país vizinho, sofreria consequências imprevisíveis, numa alusão às armas nucleares táticas russas.

As tropas russas deixaram um mar de devastação e provocaram uma crise humanitária na Ucrânia, mas não lograram ocupar Kiev nem mudar o seu governo. Uma nota formal da embaixada russa em Washington transmitiu ao governo norte-americano uma segunda advertência, de consequências também imprevisíveis, no caso de os EUA continuarem a armar a Ucrânia.

Se a Finlândia e a Suécia confirmarem sua intenção de ingressar na Otan, a ampliação substancial da fronteira da organização com a Rússia provocaria, nas palavras de Moscou, a perda da neutralidade de que gozam hoje ambos os países europeus. Por fim, o afundamento do navio Moscou, a nau capitânia da esquadra russa, no Mar Negro, na avaliação de Medvedev, ex-primeiro-ministro russo, provocará a nuclearização da esquadra russa na região. Mais uma vez, uma perigosa banalização do uso da arma nuclear.

Fracassado o plano inicial de tomar Kiev, Putin redirecionou suas tropas e tanques para a fronteira leste, com o objetivo de construir um corredor militarizado para assegurar a conexão por via terrestre da região de Donbass com a Crimeia, já anexada pela Rússia em 2014.

Neste ponto estamos. Mas a ambição de Putin parece ir ainda mais longe. Com a ocupação e virtual destruição de Mariupol, no sudeste, e a possível ocupação de Odessa, ao sul, os russos se propõem a fechar o acesso da Ucrânia ao mar e sufocar a sua economia. Foi o que deixou entender o comandante de Operações da Rússia no sul da Ucrânia.

Até há pouco, os países ocidentais pouco mais haviam feito do que adotar sanções econômicas, que afetam a economia russa e sua população, mas não arrefecem o ímpeto belicoso de Putin. Para detê-lo, seriam necessárias duas medidas. A primeira seria o embargo nas vendas de petróleo e gás pela Rússia, o que reduziria pela metade sua receita de exportação e daria um golpe fatal ao financiamento do esforço de guerra. A Alemanha, no entanto, ainda hesita em tomar essa medida extrema, pelo impacto que teria para a sua população e para a indústria alemã.

A segunda medida seria uma ampliação e o ajustamento da ajuda militar norte-americana às necessidades efetivas e prazos do exército ucraniano. Militares norte-americanos já reformados e que ocuparam altos cargos de comando na Otan têm se queixado publicamente da contemporização de Biden em fornecer os equipamentos que a Ucrânia desesperadamente solicita, talvez por receio de uma escalada russa para um confronto nuclear.

O que está em jogo, segundo esses militares, não são as conquistas localizadas de Putin no campo de batalha, mas a credibilidade do guarda-chuva nuclear americano diante das possíveis ameaças feitas a aliados dos EUA, o que preocupa sobretudo o Japão. Biden ajudará a Finlândia e a Suécia, que ainda não fazem parte da Otan? Se o fizer, por que não ajudaria também a Ucrânia, que está na mesma situação de um país aliado, mas que ainda não é membro da organização?

O encontro do secretário de Estado Antony Blinken e do chefe do Pentágono, Lloyd Austin, com o presidente da Ucrânia, Zelenski, em Kiev, há cerca de duas semanas, poderá alterar este panorama e elevar o conflito a um patamar mais alto, envolvendo diretamente, pela primeira vez, Washington e Moscou, como Putin aparentemente estava buscando. A visita de dois altos funcionários do governo Biden e a designação de um embaixador americano em Kiev dão dimensão política à crise. As várias modalidades da ajuda militar, seja pela sofisticação da tecnologia, seja pelo engajamento de oficiais norte-americanos no treinamento dos militares ucranianos, darão novo alento à Ucrânia em seu corajoso enfrentamento das tropas russas. Biden, por sua vez, parece determinado a aumentar a ajuda militar para a Ucrânia em mais de US$ 40 bilhões.

A invasão da Ucrânia trouxe uma reconfiguração do jogo de poder em escala mundial, com mais união na Europa e um fortalecimento da aliança transatlântica. Mas trouxe, também, uma perigosa banalização da arma nuclear. Enquanto na guerra fria a dissuasão visava a desestimular e mesmo evitar o recurso à arma nuclear, o artefato nuclear tático, de menor alcance ou carga, torna possível a escalada da guerra ao extremo de um confronto nuclear, ainda que limitado. Por essa mesma razão a Rússia elegeu a arma de pequeno porte como uma prioridade de sua estratégia militar. Sua carga pode ser de 0,5 quiloton a 10 quilotons, em comparação com a bomba de Hiroshima, que tinha 15 quilotons, portanto com uma capacidade de destruição bem maior.

As ameaças de Putin, ainda que não se concretizem, poderão gerar uma nova corrida armamentista, desta vez de artefatos nucleares táticos.

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CONSELHEIRO DE FELSBERG E ADVOGADOS, FOI EMBAIXADOR DO BRASIL EM WASHINGTON

Opinião por Sergio Amaral