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Opinião|A fé move tributos

É questionável a alteração constitucional em favor das entidades religiosas no que se refere ao pagamento de IPTU.

Atualização:

No final do ano passado, o Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 200/16, pela qual é proibida a incidência do IPTU sobre imóveis alugados por entidades religiosas para ali estabelecerem seus templos.

A imunidade de templos religiosos a impostos relaciona-se à separação entre Igreja e Estado. Na Constituição do Império (1824), a religião católica apostólica romana era a religião oficial do Brasil, e o culto das demais religiões era autorizado apenas em âmbito doméstico ou particular (artigo 5.º). Com a primeira Constituição republicana (1891), indivíduos e confissões religiosas foram autorizados a “exercer publica e livremente o seu culto” (artigo 72), e o Estado foi proibido de “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (artigo 11).

A Constituição federal de 1988 reafirmou “o livre exercício dos cultos religiosos” (artigo 5.º), proibindo o Estado de “embaraçar-lhes o funcionamento” (artigo 19). Neste contexto, seu artigo 150, inciso VI, alínea “b”, vedou a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto, acrescendo, no parágrafo quarto do artigo, que tal vedação compreende “o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades”.

A interpretação desse parágrafo quarto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) liberou as entidades religiosas do pagamento do IPTU nos casos em que seus imóveis fossem alugados a terceiros. Assim, o IPTU não seria devido por elas ainda que, nestes imóveis, não ocorresse qualquer culto. Era necessário, porém, que os recursos advindos da locação do bem fossem destinados à manutenção da entidade, configurando-se deste modo a relação “com as finalidades essenciais” dela.

O Supremo, no entanto, não cuidou da hipótese inversa, em que a entidade religiosa não era a proprietária do imóvel (locadora), mas sua locatária, locando-o de um terceiro com o objetivo de utilizar o imóvel em seus cultos.

Neste segundo caso, decisões de instâncias superiores foram contrárias à dispensa do pagamento do IPTU, entendendo que a imunidade prevista no artigo 150, VI, “b”, da Constituição só seria aplicável se o imóvel locado fosse de propriedade da entidade religiosa.

Isso porque, enquanto proprietária, seria ela a devedora do IPTU, que não seria exigível se os recursos obtidos com a locação do bem fossem destinados à manutenção de suas atividades essenciais. Todavia, tratando-se de imóvel alugado pela entidade religiosa, portanto, de propriedade de terceiro, é este terceiro o devedor do IPTU, e ele não é beneficiário da imunidade constitucional, sendo irrelevante que tenha acordado com a entidade religiosa (locatária) que ela ficaria responsável pelo imposto.

Neste cenário mais oneroso para tais entidades, que arcavam com o IPTU incidente sobre o imóvel do terceiro a menos que o próprio município interessado conferisse isenção do imposto (como fez São Paulo), o então senador Marcello Crivella apresentou a PEC recentemente aprovada.

Com ela, o IPTU deixa de incidir “sobre templos de qualquer culto, ainda que as entidades abrangidas pela imunidade de que trata a alínea “b” do inciso VI do artigo 150 sejam apenas locatárias do bem imóvel”. A inclusão desse trecho na Constituição extingue as chances de contestação da medida.

É sempre oportuno lembrar a relevância atribuída pela Constituição à liberdade religiosa, exercível nos marcos de um Estado laico, ou seja, de um Estado que não adota ou apoia qualquer confissão religiosa, mas cultiva a diversidade de opiniões, crenças e opções presentes na sociedade. Também se reconhece o papel auxiliar que as entidades religiosas exercem no campo da assistência social e do acolhimento das pessoas, além da importância da religião na vida de muitos de nós (para a qual o espaço do culto, alugado ou não, é essencial).

Ainda assim, é questionável essa alteração constitucional em favor das entidades religiosas. E apenas delas, já que a PEC aprovada não inclui locações feitas por instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos, que também são beneficiárias de imunidade conforme a Constituição. A nova norma ainda favorece os proprietários de imóveis alugados para aquelas entidades, que deixarão de estar obrigados ao pagamento do IPTU (independentemente de acordo com o locatário para liquidação do imposto).

Mais importante ainda, a nova norma atenua a tributação das entidades religiosas ao mesmo tempo que outros setores essenciais para a sociedade seguem sendo tributados, com efeitos especialmente perversos para os mais pobres. Basta lembrar que a cesta básica é tributada, que itens primordiais como energia elétrica são pesadamente taxados e que a perda de arrecadação com o IPTU será compensada pelos municípios com outros gravames sobre a sociedade. Não tem milagre.

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DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO, É PROFESSOR DA FACAMP E FADI

Opinião por Marcelo de Azevedo Granato