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Opinião|A lei da impunidade

O que se pretende com a reforma da Lei da Improbidade é uma mudança para pior.

Atualização:

Não obstante a corrupção e a improbidade serem endêmicas no Brasil, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 10.887/2018, que modifica a Lei da Improbidade Administrativa (Lei n.º 8.429/92), um dos principais instrumentos para o combate das graves chagas que imolam a Nação. Norma que institui um verdadeiro código da moralidade na administração pública brasileira, a função da Lei da Improbidade Administrativa é cumprir a Constituição federal de 1988, que manda punir atos de improbidade administrativa: condutas que caracterizam enriquecimento ilícito na função pública, causam prejuízo ao erário ou atentam contra os princípios da administração pública.

As sanções aplicadas são fortes porque colimam a higiene ética na condução dos negócios públicos, compreendendo, entre outras penas, perda de bens ou da função pública e suspensão dos direitos políticos, além do ressarcimento do dano. Afinal, como disse Ulysses Guimarães, “a corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública”.

A lei tem quase 30 anos e sua aplicação é frequente pelos tribunais brasileiros. Somente é concebível sua modificação – após tantos casos julgados, em especial, os do mensalão e do petrolão – para aperfeiçoamento e melhoria na luta contra o maltrato da coisa pública. 

Abuso de poder, locupletação ilícita, malbaratamento do patrimônio público são vícios que devem ser controlados e punidos. Responsáveis pela baixa capacidade de inversões públicas objetivando serviços públicos eficientes – saúde, transporte, segurança, educação, etc. –, entre outros corolários, sua origem é o patrimonialismo, o conflito entre interesses públicos e privados, articulado em tenebrosas transações à sorrelfa.

O substitutivo recentemente apresentado pelo relator do Projeto de Lei n.º 10.887/2018 causa espanto: ele suaviza sobremaneira a lei e dificulta a sua aplicação. Em última análise, transforma a Lei da Improbidade em Lei da Impunidade. Elimina espécies de atos de improbidade, como aqueles em que não há prejuízo material, mas são contaminados por perseguição, favorecimento, desvio e secretismo, como a fraude em concurso público, o assédio moral e sexual praticado pelo servidor no exercício das funções, a solicitação de vantagem indevida em razão da função pública, o nepotismo, a contratação sem concurso público e a contratação de cargos em comissão em desvio de função.

O substitutivo também reduz o montante da pena de multa e os patamares mínimos das penas de suspensão de direitos políticos e de proibição de contratar com o poder público. Além de restringir a perda da função pública ao vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha por ocasião dos fatos. 

Além disso, encurta o prazo de prescrição, cria diversas causas de isenção de responsabilidade do agente público e hipóteses de rejeição antecipada da ação, exclui a responsabilidade por culpa, cria obstáculos à responsabilização de empresas beneficiadas que constituam sucessoras, além de divergir abertamente da jurisprudência consolidada dos tribunais superiores, etc.

Em outras palavras, resta evidente que a lógica que conduz o processo legislativo é a seguinte: mesmo grassando no atacado e no varejo a corrupção lato sensu, a normativa que torna viável e assegura a sua punição deve ser arrefecida, abrandada, diminuindo seu potencial. Não é ocioso perguntar: “Cui bono? Cui prodest?” (A quem beneficia? A quem aproveita?).

A preocupação é sensível e intensa. O que se pretende é a reformatio in peius – ou seja, a mudança para pior – de uma lei que “pegou”, justamente num país onde a corrupção é frequente e estruturada.

A lei já foi alterada outras vezes – e sempre para melhor. Recentemente, foi aprimorada com a possibilidade de celebração de acordo visando à punição mais célere e à efetiva colaboração na recuperação de ativos desviados e desmantelamento de esquemas ilícitos. As alterações agora pretendidas por meio do substitutivo apresentado ao projeto de lei, além de conduzirem à insuficiente proteção do patrimônio público, vão na contramão de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate à corrupção, destoando de outras normativas, fruto desses pactos, que aprimoram a repressão aos ilícitos contra a administração pública, como a Lei Anticorrupção Empresarial (Lei n.º 12.846/2013) e a Lei de Organizações Criminosas (Lei n.º 12.850/2013).

Um dos princípios do Direito contemporâneo é a proibição do retrocesso. Que seja aplicado vigorosamente. Como dizia Oswald de Andrade, “voltar para trás é que é impossível. O meu relógio anda sempre para a frente. A História também”.

* RESPECTIVAMENTE, PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, SUBPROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA E PROMOTORA DE JUSTIÇA