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Opinião|À mesa na França

Macron foi eleito num processo de evitar o ‘mal maior’. Mas daí a ser alçado a moleque...

Atualização:

Desmentindo de saída o que sugerem as aparências, adianto que este artigo não rende tributo, por merecido que seja, à memória de Saul Galvão ou de Reali Júnior, referências jornalísticas e gastronômicas que deleitariam qualquer leitor desta página. Hélas, a mesa de que trataremos é menos faustosa nos acepipes e nas delícias do terroir gaulês, sobre o qual os cronistas mundanos discorrem com mais propriedade. No nosso caso, a mesa é a de negociação, o espaço em forma de arena onde se digladiam ou se harmonizam duas ou mais visões de mundo: a que apresentamos – que pode até ser consensual para muitos fora do Hexágono – e a francesa, que não raro vem tisnada do que muitos consideram arrogância, talvez por trair pitadas de insolência e soberba, ingredientes hoje elevados a especiaria política. Busquemos o juste milieu.

As primeiras alusões que ouvi à França ressoaram no Recife da infância, ainda nos anos 1960. Não escapou às crianças que éramos o conflito que despedaçava os intelectuais, aqueles que tinham ido às lágrimas com a liberação de Paris em agosto de 1944. Eis que, então, o destino colocava uma pedra no trajeto do amor incondicional ao virem à baila as crispações da chamada Guerra da Lagosta, explicada pelos adultos, ora satanizando o general De Gaulle, ora minimizando o incidente. Nas rádios, só Eliana Pittman sorria com o sucesso Esse Mar é Meu. Apesar das altercações, a França nos impregnava os sentidos. Na tentativa de chegar lá, aos 15 anos, por puro acaso não fui um dos passageiros do avião da Varig que se incendiaria na cabeceira de Orly, duas semanas depois de eu ter alcançado Paris por outra rota.

Anos mais tarde, a mesa de negociação se tornou tangível. Não sem antes esbarrar num percalço de viés amazônico, por assim dizer, hoje esquecido. No começo dos anos 1980, tendo passado por Paris incólume, tive acesso recusado à França na volta da Arábia Saudita. Diante da alegação de que precisava de visto, desdenhei da incúria do funcionário, pois brasileiros eram dispensados da formalidade. Mal sabia que, enquanto mercadejava em Jeddah, os padres Aristides Camio e François Gouriou haviam sido expulsos do Brasil. Talvez fosse essa a razão da exigência, mas, sentindo que a ironia da sorte me alvejara o contrapé, o agente do Estado agraciou-me com um visto excepcional. Menos mal que não me ocorreu chamá-lo de “moleque”.

Pouco mais tarde, à frente das exportações de um conglomerado industrial brasileiro, eis que os acionistas erigiram uma unidade de nitrocelulose que, pela escala, precisava ganhar todos os espaços do planeta. E, ainda assim, talvez sobrasse produto. Quem, aos 27 anos, não exulta diante do impossível? Em 20 meses atingimos 40 mercados de exportação. De párias e aventureiros passamos a ser vistos como players a considerar, quando não a temer. E foi então que o jovem executivo que fui aceitou os ditames da diplomacia corporativa, o que incluía rodadas de golfe em Ayr, na Escócia, e ritualizado kaiseki nipônico, nas torres iluminadas de Tóquio. Nenhuma ação concertada das seis irmãs – Bayer, ICI, Hercules, Asahi, TNC e SNPE – nos intimidava ou refreava o nosso ímpeto expansionista.

As retaliações não tardaram. Dos Estados Unidos, advogados se ofereciam para nos defender em investigação de prática de dumping movida pelo peticionário americano. Em Berlim, ávidos por comprar o edital de privatização de um Kombinat da antiga RDA (Alemanha Oriental), encarávamos concorrentes apavorados com o desassombro de nossa internacionalização. Em Taipé, os locais pediam acordos para o Sudeste da Ásia. De Londres, Mr. Waldorf, da ICI, conclamava a concórdia e acenava com cooperação tecnológica, dando mostras do pragmatismo que rege os britânicos. Dominantes na América Latina, onde sacudíamos os últimos bastiões franceses em Bogotá, nós nos jactávamos intimamente de que mais ninguém tinha visão tão acurada de mundo. A necessidade nos impusera uma vocação. Mas eis que Monsieur Furet, da SNPE-Bergerac, tentou impor sua tutela. Ora, nada podia ser tão francês quanto os acenos de sua proposta civilizatória.

Assim, em rodadas de ostras no Café de la Paix, íamos buscar paciência para ouvir-lhe o que denominava a vision française do xadrez internacional. Nuançava palavras como esgrimista, tão cuidadoso com o mot juste quanto Flaubert, letal no ardil como Talleyrand, e nós penávamos para desbastar-lhe o chantili do verbo e discernir, lá no fundo, a essência de uma mensagem sutil, rica em sonoras onomatopeias. É que para ele, atribuindo-se uma missão salvadora que, se acatada, propiciaria polpudos dividendos a todos os players, éramos a ovelha desgarrada a quem acenava com regalias de membros do clube. Ora, sabendo de nosso peso relativo e destemor, queria nos domesticar. Retrospectivamente, fica claro hoje que o colega destilava a quintessência do paradoxo francês. Qual seja, o de serem amigos da humanidade, mas reagirem mal a quem desdenha dos pilares da implacável lógica cartesiana que impregna, de uma ponta a outra, o único idioma em que se sentem bem.

Embora nada possa atenuar o peso inominável das grosserias da família Bolsonaro ao Élysée, não se pense que o comércio internacional seja outra coisa além de uma arena renhida, e que todo pretexto não será usado para se impor aos incautos. País rural e conservador, no dizer de Giscard d’Estaing, há de se levar em conta que Macron foi eleito num processo de evitar o “mal maior”, conceito bastante plástico lá como cá. Ciosos de seu baixo capital eleitoral, líderes mundo afora não perdoam as contradições alheias, de que se valem para se sobressair. O oportunismo não é invenção nossa. Mas daí a ser alçado a “moleque” por nosso atual postulante a embaixador em Washington vai, no mínimo, excesso de zelo em emular o atual ocupante da Casa Branca. Francamente.

*ESCRITOR, É AUTOR DE ‘CARTA A PORTUGAL’ (GLACIAR, LISBOA, 2019). E-MAIL: DOURADOFERNANDO372@GMAIL.COM

Opinião por Fernando Dourado Filho