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Opinião|A polícia política, hoje com Bolsonaro

Na última década, e de modo acelerado desde 2018, vemos uma força centrípeta arrastar as garantias institucionais e rebaixar a política ao plano da violência.

Atualização:

A ascensão de Jair Bolsonaro não representou apenas uma mudança de governo. Sua intenção é a substituição gradual de um regime de poder por outro. Tudo o que consideramos ser fundamental ao regime democrático – liberdade de imprensa e cátedra, divisão de poderes, direito de defesa, direito ambiental, igualdade social, de gênero e raça – é percebido justamente como os obstáculos a superar na “(contra)revolução que estamos vivendo”.

Minha pesquisa tem como foco o cotidiano de favelas e periferias. Nelas, a ordem estatal convive com outros dois ordenamentos: 1) o que emana de facções criminais; e 2) o que é instituído por policiais agindo fora da lei, cuja forma acabada são as milícias. Argumento, aqui, que a convivência íntima entre esses três regimes de poder, antes observável apenas em territórios periféricos, foi trazida para o centro da vida política nacional por Bolsonaro.

Há 20 anos, falava-se em fazer os direitos formais chegarem às favelas. Em vez disso, o que vimos foi o movimento oposto: formas elementares da vida política, calcadas na violência armada das periferias, se impuseram nacionalmente. Na última década, e de modo acelerado desde 2018, vemos uma força centrípeta arrastar as garantias institucionais e rebaixar a política ao plano da violência. Um adesivo no carro termina em prisão arbitrária em Goiás; uma manifestação pública é reprimida por decisão autônoma dos policiais, em Pernambuco; um petista é morto por um policial, em casa; jornalistas e ativistas são mortos na Amazônia. Uma determinação da Suprema Corte que reduzira em 70% a letalidade policial no Rio de Janeiro teve como resposta a operação policial mais letal da história do Estado, no Jacarezinho.

Como chegamos a isso? Em primeiro lugar, pela expansão das facções. O Crime, com maiúscula, reivindicou o monopólio legítimo da violência nas prisões e periferias para, em seguida, governar os sensos de justiça há muito hegemônicos nas comunidades pobres. Aquilo que se chama na imprensa de “tribunais do crime” é, na verdade, a elaboração prática de um governo de extração velhotestamentista: não se deve caguetar, dar falso testemunho; não se deve talaricar, cobiçar a mulher do irmão; não matarás, sem o aval da facção; não se deve roubar na “quebrada” ou chamar a polícia. É o Crime que oferece a segurança e, portanto, regula a ordem social.

Em segundo lugar, pela reação policial ilegal, centrada nos achaques aos mercados criminais. O segundo regime de poder que já se notava claramente nas favelas e periferias há duas décadas, e hoje chega a posições centrais na esfera política, tem base material nesses achaques rotineiros. R$ 20 mil, R$ 30 mil, R$ 100 mil, R$ 200 mil por semana para policiais que achacam bandidos violentamente. Policiais corretos vão para funções administrativas. Sobram no “front”, como eles dizem, os mais brutos. Estes aderem às ideologias totalitárias da guerra e têm acesso aos seus espólios: dinheiro, armas e mulheres – sim, elas são vistas como objetos –, mas, sobretudo, posições de comando na corporação.

Nessas posições, é possível pilhar também os fundos públicos para fortalecer seu movimento político. Sempre que figuramos a imaginária guerra do bem contra o mal, estamos financiando essa ideologia totalitária.

A polícia política faz, então, o que as facções não podem, por definição: financiar um projeto de nação inscrito na política institucional. Bolsonaro é o representante deste projeto totalitário, mas pode ser substituído. Esse projeto desloca o sentido da democratização brasileira: a fronteira radical entre quem merece viver e quem não merece, antes apenas presente nas favelas, se torna princípio federativo. O presidente comemora CPFs cancelados.

O terceiro regime de poder que se notava nas favelas e periferias de 20 anos atrás era o Estado Democrático de Direito. Não havia nem há ausência de Estado nas periferias. Além de seu braço repressivo, sempre presente, o Estado está ali representado precariamente por agentes de saúde, professores, assistentes sociais e defensores de direitos, atuando em entidades sociais de baixo orçamento. Não é preciso dizer que essa parca proteção social tem sido destruída por Bolsonaro.

Sua ideologia brutal está bem instalada em diferentes partidos, compõe com a maioria na Câmara e no Senado, é forte entre juízes e no Ministério Público. As polícias políticas espalham sua ideologia em TV aberta diariamente e estão nos grupos de WhatsApp de todos os bairros. Pior: centenas de bilhões de reais fluem do orçamento público anual para financiar seu modelo de segurança profundamente ineficiente e seu projeto de nação policial.

A polícia política vai integrar uma tentativa golpista, em escala nacional? Essa parece ser a aposta de Bolsonaro. Mas os setores democráticos, que nunca tiveram um projeto de segurança pública condizente com a ameaça que a politização das polícias representa, deveriam também se preocupar com o que virá depois das eleições de 2022.

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PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS, É PESQUISADOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E PLANEJAMENTO (CEBRAP)

Opinião por Gabriel Feltran