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Opinião|A propaganda, a ciência, o imbróglio e o ano novo

Fapesp corre o risco de perder 30% de sua verba e Bandeirantes aumenta a de publicidade em 70%

Atualização:

No gran finale de 2020, o governo paulista deu um jeito de aumentar os recursos para fazer propaganda de si mesmo e, na outra ponta, deu outro jeito para, em plena pandemia, ameaçar o orçamento da ciência. O ano que começou mal termina muito pior.

Nos derradeiros ajustes da Lei Orçamentária Anual (LOA), na Assembleia Legislativa, o Palácio dos Bandeirantes conseguiu incluir uma elevação de 69% na sua verba publicitária (como noticiou este jornal na primeira página, dia 20, com reportagem de Brenda Zacharias). O montante, que ficou na casa dos R$ 90,7 milhões em 2020, saltará para R$ 153,2 milhões no exercício de 2021.

Na mesma LOA aparece um corte de 30% na receita da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A entidade tradicionalmente conta com 1% da receita tributária do Estado. Em 2021 poderá ficar com apenas 0,7%. Traduzindo em graúdos, estamos falando de meio bilhão de reais a menos.

Por enquanto, dinheiro ainda não foi retirado, de fato, mas a Fapesp corre o risco de perdê-lo. O corte aparece no texto final da LOA (publicado no Diário Oficial de ontem), com todos os números e vírgulas, mas talvez não venha a ser efetivado. Mas como assim?, há de se perguntar o improvável leitor. Se a lei manda cortar, como é que podemos ter a expectativa de que o corte talvez não se consume?

Para entender o capcioso imbróglio, pelo qual o malfeito se insinua enquanto finge não ser o que é, precisamos conhecer um pouco mais desse novo gênero artístico-orçamentário de dissimulação, tão em voga na política: a técnica legislativa de ordenar uma coisa e, ato contínuo, ordenar o seu contrário.

A mesma LOA que corta “descorta”. Numa das inumeráveis tabelas que a acompanham, consta um valor para o orçamento da Fapesp que equivale claramente à redução de 30% de suas receitas. Para isso a LOA se apoia lógica que prevaleceu nas emendas à Constituição federal que preveem a Desvinculação de Receitas da União (conhecida pela sigla de DRU) e a Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios (Drem). Essas desvinculações constitucionais permitiram que as chamadas “receitas vinculadas”, tanto na União como nos Estados e nos municípios, fossem diminuídas. Logo, se a Drem valer para a Fapesp, ela perderá um terço do tamanho que tem hoje.

Acontece que o destino ainda não está selado, pois, como já foi dito, a mesma LOA que corta “descorta”. Em seu artigo 11, ela manda cumprir o que está escrito no artigo 271 da Constituição estadual de São Paulo – e esse artigo, o 271, determina de forma expressa, inequívoca, a destinação de 1% da receita tributária do Estado à Fapesp.

Em resumo, a LOA paulista para o ano de 2021 é uma contradição em termos, um oxímoro legislativo. Em suas previsões numéricas, impõe o corte da Fapesp. Em seu artigo 11, impede o corte da Fapesp.

O que vai acontecer? As apreensões estão lançadas. Há juristas que entendem que o orçamento da Fapesp não provém de uma receita “vinculada”, como as outras, e, portanto, a Drem não se aplica a ela. Mas há os que dizem que a Drem, um dispositivo da Constituição federal, deve prevalecer sobre as Constituições estaduais.

Não vai ser fácil. Só o que se sabe até agora, com segurança, é que o futuro da ciência paulista, que já era ruim, piorou um pouco mais. É a primeira vez que um ataque tão frontal contra os recursos da Fapesp ganha forma de lei. As forças tecnocráticas que, no curso de vários governos tucanos paulistas, vêm se articulando contra a pesquisa e contra a universidade pública marcaram seu tento, desfecharam sua pirraça e instalaram no horizonte próximo essa incerteza cabulosa.

A integridade da Fapesp nunca esteve tão vulnerável. Para o ano que vem, a manutenção de seu orçamento normal vai depender da assinatura do governador do Estado, a quem cabe expedir, por decreto, os termos da execução orçamentária. Quando for pagar as pesquisas que financia, muitas delas sobre tratamentos contra a covid-19, no Instituto Butantan e em outras instituições, precisará contar com a boa vontade do chefe do Executivo – que assegurou, publicamente, mais de uma vez, que não implementará corte algum.

Podemos acreditar nele? Em nota divulgada agora em dezembro, a instituição diz que sim: “A Drem não será aplicada à Fapesp em 2021 e há um compromisso claro do Governador João Doria e do Vice-governador Rodrigo Garcia, que também não será aplicada nos próximos anos”. Ao que se sabe, essa confiança na palavra do político em questão não tem bases científicas, mas é o que temos para o réveillon. Se cortes vierem, só vai restar aos dirigentes da Fapesp entrar na Justiça, o que trará mais desgastes e mais incertezas.

De sua parte, o mesmo Palácio dos Bandeirantes, que alega falta de recursos para fragilizar o financiamento da ciência e do conhecimento, não vê obstáculos para majorar em 70% a sua verba publicitária. É que estamos em tempos de pandemia e, você sabe, o poder acredita que a propaganda salvará vidas – de governantes.

Feliz ano novo.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP