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Opinião|A resolução da ONU além do que os olhos podem ver

Os 141 Estados favoráveis prepararam o terreno para as batalhas diplomáticas, políticas e jurídicas que se seguirão.

Atualização:

Na diplomacia e nas relações jurídicas internacionais, há certos atos que guardam significados para além do que um mero perpassar de olhos pode sugerir. A Resolução da Assembleia-Geral das Nações Unidas adotada no dia 2 de março de 2022 por 141 votos favoráveis, 5 contrários e 35 abstenções é um desses atos. Não obrigatória por natureza, exortatória por definição, ainda assim a resolução é eloquente. Nos detalhes, diz muito, e num conflito de argumentos jurídicos pesa a balança para um dos lados da narrativa.

A longeva e bem definida técnica dominada por juristas internacionalistas sugere que não basta que a natureza não vinculante da resolução do órgão democrático da ONU não encerre os debates: o texto, o contexto e os precedentes são significativos. Quanto aos precedentes, trata-se de uma resolução invocando a vetusta resolução Unindo para a Paz de 1950. Nas raras vezes em que deu o ar da graça para acomodar crises internacionais, tal resolução fazia com que se lesse, mutatis mutandis, que “o balanço de competências da ONU se altera, a Assembleia vai agir com poderes do Conselho, que está emperrado”.

Quanto ao texto, a escolha de verbos é loquaz e noticia-se que o Brasil foi jogador importante no exercício de encontrar termos capazes de impedir confrontação demasiada. O voto brasileiro veio acompanhado de uma explicação que pode ser traduzida por “não é o texto que queríamos, mas, dadas as circunstâncias, não se pode votar contra”. Tal posição pode ser lida sob diferentes ângulos. Por um lado, serviria de aceno ao diálogo com Moscou; mantém-se a porta aberta. Por outro lado, alinha-se à posição majoritária, engrossando o coro sobre o descabimento dos argumentos que ressoam do lado de lá do muro.

Isso porque o texto da resolução é contundente e significativamente mais severo do que o adotado em relação à anexação da Crimeia em 2014, por exemplo. Não é todo dia que se lê num documento da ONU que um de seus órgãos “lamenta, nos termos mais fortes, a agressão da Federação Russa contra a Ucrânia em violação ao Artigo 2.4 da Carta”. Nesse sentido, a alta adesão de 141 Estados é ainda mais significativa: construiu-se consenso na maioria em torno de um texto austero que tem implicações do ponto de vista legal.

A resolução reafirma seu compromisso com a soberania, a independência, a unidade e a integridade territorial (também marítima) ucraniana. Para a Rússia, a resolução deplora, em vez de condenar, e demanda a retirada de tropas e o fim das violações, recordando que existem princípios obrigatórios que norteiam a vida e a amizade dos Estados.

O texto não se esquece da Bielorrússia, cujo uso ilícito da força também é lastimado.

Em abstrato, a resolução condena violações ao direito humanitário e pede o respeito aos princípios básicos do Direito Internacional. Eis a premissa básica da resolução: as normas reconhecidas devem ser respeitadas e não se pode retroceder naquilo que foi estabelecido.

Não é a força dos verbos escolhidos, mas as informações que a resolução avança que a transformam num instrumento poderoso. O documento torna indisputáveis certos fatos: 1) houve uma agressão, isto é, no linguajar jurídico, o mais severo uso da força prenunciado na Carta da ONU e em resoluções anteriores; 2) a Carta foi violada em relação à proibição do uso da força; 3) o uso da força foi ilícito, de modo que as escusas apresentadas até então pela Rússia foram rechaçadas; 4) a declaração sobre o status de Donetsk e Luhansk pela Rússia é ilícita; 5) voltam à baila os acordos de Minsk, responsáveis por apaziguar a crise russo-ucraniana de 2014.

Duas consequências podem ser depreendidas e merecem atenção. Uma, dentro da arquitetura jurídica que estrutura o sistema ONU: está-se diante de sérias violações, até mesmo das assim chamadas regras peremptórias do Direito Internacional. Duas: diante de violações às regras e princípios cardinais do sistema, algumas consequências especiais podem ser elencadas.

A primeira é que os Estados violadores têm de cessar seus atos ilegais. Além disso, todo membro da comunidade internacional está sob o dever de não reconhecimento desses atos ilícitos. E terceira, se há violações a regras, os atos tomados pelos membros da comunidade para que os violadores voltem a honrar suas obrigações – mesmo que em desacordo com o Direito – são legitimáveis. Um manto de legalidade – com limites de proporcionalidade e necessidade – recobre as sanções impostas.

Em suma, os 141 Estados que votaram a favor da resolução de 2 de março avançaram estrategicamente para além do texto e prepararam o terreno para as batalhas diplomáticas, políticas e jurídicas que se seguirão. Não obrigatória? Sim. Eloquente? Também. Uma vitória de Pirro? Os próximos passos do conflito responderão. Será invocada no futuro? Certamente.

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PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA UFMG, MEMBRO DA DIRETORIA DA ILA-BRASIL, É COORDENADOR DO GRUPO DE PESQUISA SOBRE CORTES E TRIBUNAIS INTERNACIONAIS CNPQ/UFMG