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Opinião|A SOS e a defesa intransigente da Jureia

Não podemos abrir mão das conquistas dessa região, a mais preservada do litoral brasileiro

Atualização:

Sempre é conveniente contextualizar historicamente os fatos para que possamos compreender determinadas situações. A Fundação SOS Mata Atlântica foi criada numa decisão tomada em reunião na Ilha do Cardoso em fevereiro de 1986, com a presença de lideranças locais, funcionários públicos, empresários, jornalistas, ambientalistas, todos preocupados com o futuro da região estuarina lagunar de Iguape-Cananeia-Paranaguá, um conjunto de ecossistemas de grande relevância da costa brasileira.

Vislumbrando os ventos de mudança então em curso no Brasil, as pessoas ali presentes resolveram criar uma organização não governamental (ONG) que pudesse incorporar uma visão diferente para essa região menos devassada pela ocupação sem planejamento, com a promoção de um desenvolvimento que conservasse a riqueza natural e cultural lá existente, promovendo geração de renda para todos e justiça social. Apenas a título de ilustração, o conceito de “desenvolvimento sustentável” só veio a ser criado alguns anos depois pela Comissão Brundtland, bem como o termo “biodiversidade” pelo grande naturalista Edward Wilson, em 1988.

À época pesavam sobre a região três ameaças muito concretas: a construção de usinas nucleares pelo governo militar, a implantação de empreendimento imobiliário de grande porte pela Gomes de Almeida Fernandes e o grilo de 60 dos 90 quilômetros do litoral do Paraná por uma subsidiária do Grupo Asamar, a Capela - Companhia Agropastoril Litorânea do Paraná.

Em relação ao empreendimento imobiliário e ao grilo do litoral do Paraná, eram a alternativa para a promoção do desenvolvimento regional, em termos de geração de emprego e renda, com a oferta de empreendimentos imobiliários em toda a região. Com o apoio dos políticos locais, que viam a possibilidade de aumento das receitas tributárias com a arrecadação de IPTU incidente sobre os imóveis, nada de novo se propunha para a porção mais preservada da Mata Atlântica. Populações tradicionais, ecossistemas, sustentabilidade não faziam parte do vocabulário da época.

Governavam São Paulo e Paraná, na ocasião, Franco Montoro e José Richa, abertos aos novos tempos e sensíveis às novas demandas. Com isso se incorporou o respeito às populações tradicionais e a necessária regularização fundiária do litoral paulista e paranaense na agenda dos dois governos. Em São Paulo formou-se o Grupo da Terra na Sudelpa (Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista) e no Paraná, a Surehma (Superintendência dos Recursos Hídricos e Meio Ambiente), com o objetivo de implementar um programa inovador de gerenciamento costeiro em toda a região.

É bom assinalar que nesse período não existia a Convenção n.º 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e tampouco o reconhecimento da importância da sociedade civil na formulação de políticas públicas em termos nacionais e internacionais. Não fosse a resistência oferecida por esse grupo de pessoas, a instalação de usinas nucleares no litoral sul de São Paulo, o empreendimento imobiliário na Jureia e a consolidação do grilo de dois terços do litoral do Paraná teriam sido concretizados.

O que teria acontecido com a região, não fosse o sucesso desse movimento: em termos de emprego e renda, estariam os caiçaras mais bem inseridos na economia regional? Com as usinas nucleares e a consolidação do grilo do Grupo Asamar, eles teriam acesso à região ou estariam impedidos por questões de segurança nacional e em razão da especulação imobiliária?

Na controvérsia sobre o destino das áreas protegidas do litoral sul de São Paulo, especialmente o Mosaico Jureia-Itatins, há uma tentativa ardilosa de reescrever a narrativa da região, ao se criar uma polarização fictícia entre a conservação da natureza e o direito dos caiçaras. Em primeiro lugar, reafirmamos que esses direitos devem ser exercidos apenas em relação às áreas tradicionalmente ocupadas, sem abrir as porteiras para veranistas e especuladores. Desse modo, é inaceitável admitir a construção na penumbra de três casas na parte mais preservada do Mosaico, longe dos olhos dos responsáveis pela gestão pública dessas áreas.

No caso da ocupação recente, estamos falando de uma área que foi incorporada ao patrimônio público com ônus para o contribuinte. Estamos diante de uma estratégia que não obteve sucesso na Assembleia Legislativa, que rejeitou, com legitimidade, a ideia de se criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) nessa área. Mas instituiu duas outras RDSs destinadas às comunidades caiçaras.

Convém ressaltar que a ação da Fundação Florestal de exercício do poder de polícia contra a prática ilegal de construção de casas e supressão de vegetação na área deve ser valorizada, em grande parte graças à firmeza de seu diretor executivo, Rodrigo Levkovicz, pelo fato de que uma eventual autorização judicial poderia criar uma situação de fato irreversível. Entendemos que a única maneira de proteger o patrimônio ambiental público se dá com efetiva atuação administrativa nos termos da Constituição federal e da legislação aplicável.

O governo estadual, por sua vez, não tem nenhuma justificativa para a precária fiscalização desse patrimônio; aliás, o Sigap (Sistema de Informação e Gestão de Áreas Protegidas e de Interesse Ambiental do Estado de São Paulo) nem sequer foi instalado nesta gestão. Além disso, mostra absoluta falta de sensibilidade para o fato de que a região tem enorme potencial de desenvolvimento, sem tirar o verde da nossa bandeira, podendo com isso gerar renda e emprego para a população e tornar-se uma referência de desenvolvimento sustentável. Para tanto precisa virar a página.

Temos responsabilidade com nossos filhos e netos: não podemos abrir mão da Jureia e de todas as conquistas dessa região, que é hoje a mais preservada do litoral brasileiro.

*Respectivamente, presidente e ex-presidentes da Fundação SOS Mata Atlântica

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