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Opinião|A TR e a defesa da Constituição

Desatende ao interesse social retirar do cidadão o que lhe foi assegurado pelo Judiciário

Atualização:

Quando da abertura do ano judiciário, o atual presidente do Supremo tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, prestou homenagem à sociedade brasileira, reafirmando ser o único compromisso do tribunal “a sujeição incondicional dos juízes à Constituição e às leis”, do que ressaltou ser consequência lógica a inexistência de “lugar para ideologias, paixões ou vontades. O juiz é vinculado à Constituição e às leis”, exclusiva e intransigentemente.

Dentro dessa vinculação, há décadas o STF tem garantido a vencidos e vencedores a correção monetária plena, não importando quem seja o réu. Como alerta o ministro Marco Aurélio, “processo não tem capa”. O STF reconhece ser a correção monetária, neutralizadora da inflação, a única maneira de manter hígidos os direitos, daí sua salvaguarda constitucional, traduzida em diversas garantias, entre elas, a certeza de que a jurisdição, e não mais a lei de talião, dá conta das mazelas humanas, por meio da recomposição integral do dano verificado.

Situação especialmente gravosa se dá quando o ato lesivo provém do Estado, que tem o dever de proteger os cidadãos. Para além dessa traição, não é novidade na História brasileira a pretensão estatal de devolver menos do que o montante a que foi condenado, pelo mecanismo insidioso de adotar índice imprestante a refletir a inflação, qual seja, a Taxa Referencial diária (TR), burlando, assim, a autoridade jurisdicional.

A jurisprudência do STF reconhece que a TR não é índice de correção monetária, seja porque mede outra realidade, a variação dos depósitos interbancários, seja porque é arbitrariamente deflacionada pelo Banco Central. Foi claro o registro do ministro Luiz Fux (Adis 4.425 e 4.357 e RE 870.947) de que “de setembro de 2012 a junho de 2013”, período de inflação alta, “a TR foi fixada em zero pela autoridade monetária nacional”.

Os argumentos que fundamentam a pretensão de adotar a TR referem-se a estado de necessidade. São pródigos os exemplos de ineficiência da administração pública, especialmente a das unidades federadas, mas o mais grave é que o estado de necessidade a que aludem Estados, Distrito Federal e municípios advém de conduta ilícita, fruto de desrespeito contínuo e leviano à Lei de Responsabilidade Fiscal. Agora, como prêmio à imoralidade, buscam o que, em linguagem técnica, é chamado de modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Usam de técnica legítima de calibração da decisão de expurgar norma do ordenamento jurídico para constranger a cúpula do Judiciário a permitir transgressão, ainda que por tempo delimitado, do texto constitucional. Deduzem argumentos ad terrorem que, no seu entender, legitimariam retirar fatia das condenações impostas à fazenda pública, a partir da adoção de índice que não reflete a inflação.

Ainda que legítimo fosse tal intento – o de perseguir um interesse meramente estatal, mas não interesse público –, não estão presentes os requisitos que autorizariam o STF a relativizar a supremacia constitucional. Em controle difuso de constitucionalidade, essa relativização exige mudança de jurisprudência (artigo 927, § 3.º, do Código de Processo Civil), inexistente no caso. Mesmo que existisse algum precedente a permitir atualização de condenação judicial pela TR, estão ausentes os dois outros requisitos legais: o interesse social e a segurança jurídica.

Nada desatende mais ao interesse social, abrangente tanto do interesse público primário quanto do interesse da sociedade no progresso social, do que vilipendiar a força da Justiça, permitindo apenas a uma parte, a mais forte (Estado), retirar do cidadão o que lhe foi assegurado pelo Judiciário. O cidadão, quando condenado a reparar dano causado ao Estado, o faz com correção monetária plena. Já quando ocupa a cadeira de credor, não tem, na visão do Estado, o mesmo direito, sendo obrigado a um “pedágio” por ter sido lesado pela fazenda pública, consistente na diferença historicamente apurada entre o IPCA-E e a TR, que chega a 50% (entre 2009 e 2015).

E considerando que há décadas se reconhece que a adoção da TR apenas em favor da fazenda pública fere direitos fundamentais (propriedade, isonomia, moralidade, autoridade da jurisdição e da proporcionalidade), permitir que o Estado possa adotá-la para atualizar as condenações que lhe são impostas é desprezar, como se inexistente fosse, a garantia constitucional de que vivemos num Estado de Direito, constrangido ao princípio da segurança jurídica.

Um último ponto pertine ainda a estas apertadas linhas: o dever de ressaltar que a União não está, nem fática nem juridicamente, em pé de igualdade com Estados, Distrito Federal e municípios e, por essa razão, não lhe cabe tratamento paritário ao conferido aos entes federados. Tanto assim que a Constituição prevê regime especial para os entes federados, mas não, para a União. As competências tanto orçamentárias quanto fiscais da União são muito diversas das atribuídas aos demais entes. A União goza de boa reputação por ser cumpridora pontual dos precatórios contra ela expedidos. E mesmo na vigência da Lei 11.960/2009 – que previu a adoção da TR pelas fazendas públicas –, adota no manual de cálculos do Conselho da Justiça Federal o IPCA-E como fator de atualização das condenações judiciais. Não lhe é, portanto, permitido agora pretender se beneficiar contra sua própria posição legislativa e contra sua reiterada conduta.

Daí a ausência de proporcionalidade e até mesmo de equidade em conferir à União a prerrogativa de pretender aplicar a TR como fator de atualização monetária, valendo aqui a lucidez de Rui Barbosa: “Quem dá às Constituições realidade não é nem a inteligência, que as concebe, nem o pergaminho, que as estampa: é a magistratura, que as defende”. E as defende, acrescentamos nós, especialmente em face dos abusos da administração pública.

* IVES GANDRA DA SILVA MARTINS E CLÁUDIA FONSECA MORATO PAVAN SÃO, RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE MACKENZIE, DA ECEME E DA ESG; MESTRE EM DIREITO CONSTITUCIONAL

Opinião por IVES GANDRA DA SILVA MARTINS E CLÁUDIA FONSECA MORATO PAVAN