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Opinião|A violência que viola a si mesma

O narcotráfico age como ‘Estado paralelo’, corrompendo em alta escala

Atualização:

A britânica Agatha Christie morreu em 1976, mas continua insuperável como romancista policial ao retratar os covis do crime. Na ficção, ninguém a superou em apontar detalhes fortuitos que levam a descobrir a sordidez que nutre os criminosos.

Agora, outra Agatha aparece na realidade (não na ficção), sem que a Agatha original possa descobrir a perversão no poder policial, que devia proteger-nos do crime, em vez de engendrá-lo. Ágatha Félix, de 8 anos, morta no Rio de Janeiro pelo que cinicamente chamamos de “bala perdida” disparada pela polícia, é uma vítima a mais do horror que faz do País um absurdo manicômio em que a morte é vista como loucura viva.

Mas, como se a loucura competisse entre si para fazer das crianças as vítimas preferenciais do horror num perverso torneio Rio x São Paulo, surgiu Raíssa, de 9 anos, assassinada por um menino de 12 anos no Parque Anhanguera. Pendurada pelo pescoço numa árvore, o corpinho mostrava o desvario do que chamávamos de “inocência infantil” e hoje vira horror banal na competição da sociedade de consumo.

Há quem negue que o menino de 12 anos seja o assassino. E creia que é um mitômano que se culpou pelo crime alheio para se sentir adulto e tão poderoso que pode até matar. Mas se a hipótese fosse verdadeira tudo seria ainda mais brutal. Na mais rica cidade do Brasil, estaríamos inoculados pela visão de que a morte nos guia e a perversão é meta do viver.

Assim, estaríamos caminhando rumo a nova “Paulicéia desvairada” no novo século?

Nos anos 20 do passado século passado, a expressão significou o delírio da criatividade artística da Semana de Arte Moderna na literatura, na música, na pintura, na arquitetura e na educação. O desvario atual, porém, é outro. Hoje a vida não se reconstrói em desvairada e bela arte, mas se destrói na alucinação dando “vivas” à morte.

Hoje vivemos situações que nem a mais audaz e brutal ficção sabe retratar.

Ágatha foi a quinta criança atingida por “bala perdida” em 2019 no Rio de Janeiro, além de um feto na barriga da mãe. A carioquinha Ágatha foi vítima de uma perversão que a britânica Agatha Christie jamais se atreveu a inventar – seria “inverossímil” num romance policial...

Conhecido como juiz sério e justo, o ministro da Justiça, Sergio Moro, limitou-se a classificar o assassinato de “evento infeliz” e ficou nisso. Não se animou a reestudar a tal de “exclusão de ilicitude” da lei que propôs ao Parlamento, na qual a polícia recebe “salvo-conduto” para matar. Basta alegar temor ou nervosismo…

No caso de Ágatha, em que as testemunhas civis negam ter havido o “confronto” alegado pelos policiais, que temor provocam uma criança e seus pais?

Essa violência explícita não é a única nem a mais perigosa ou expansiva. Já nos acostumamos com o narcotráfico e a perversão da droga. Sabemos da maldade e criticamos o uso, mas já os incorporamos ao dia a dia.

O narcotráfico está aí, como “Estado paralelo”, corrompendo em alta escala. Dos agentes inferiores do Estado, vão aos mandões. Ou alguém pensa que o poder do tráfico se esconde nos casebres da periferia, em mãos de analfabetos? A polícia cai sobre eles há anos e até os leva à prisão, mas o narcotráfico cada vez é mais poderoso.

Tem até nomes e siglas. Ordena e manda até trancafiado nos cárceres, levando a indagar: os chefões estão em mansões ou em prisões?

As “milícias” surgiram no Rio de Janeiro formadas por ex-policiais (ou policiais) que viraram “autoridade suprema” em bairros pobres. Hoje mandam mais do que o próprio Estado. Em Fortaleza e noutros pontos do Ceará, há meses algo similar provoca o terror e amedronta a população. Que cada qual pense em São Paulo...

Junto à capital da República, um aeroporto clandestino (mas não oculto e com dezenas de hangares) abriga modernos jatinhos de empresas privadas, nos quais políticos voam pelo País. Escondem-se dos voos comerciais para não serem reconhecidos e xingados pela inércia ante a violência.

Como chegamos ao horror?

O processo foi lento, mas incessante. Em 2018, quando o candidato Jair Bolsonaro transformou os dedos em pistola, ou as duas mãos em metralhadora, arrebanhava votos com a imagem que o povo assimilara no horror do dia a dia. Hoje o presidente cultiva violência, como no discurso na ONU, em que confundiu com “colonialismo” o alerta mundial sobre a preservação da natureza amazônica.

Antes dele, Lula da Silva não simulava armas com dedos ou braços. Agredia com a boca. Espalhava violência de forma indireta, mas sibilina e penetrante. Com inteligência nata e crassa ignorância, elogiava o nada saber, como se a deseducação fosse a glória e ignorar fosse sabedoria.

Essas incitações à violência nasceram dos novos hábitos da sociedade de consumo. A vulgaridade adulta inclina à violência já na infância. O grosseiro tum-tum-tum que chamam de “música” troca a harmonia pelo ruído. A TV e o YouTube têm mais poder do que o lar e a escola. E cresce na vulgar pregação dos youtubers, hoje “professores” da criançada.

O ser pensante, altruísta e solidário é substituído pelo consumidor, como um glutão comendo o banquete inteiro. Surgem “novas igrejas”, destinadas a arrecadar, como se Deus e Cristo cobrassem impostos...

A vida é um somatório. Os retalhos formam a imensa colcha que nos cobre de violência ou de solidário afeto. O desdém, porém, leva-nos a desprezar o alerta da ciência sobre a violência maior – as mudanças climáticas. Se os combustíveis fósseis, a começar pelo carvão mineral, não forem eliminados até 2030, já em 2050 começará a debacle do planeta e da vida.

A violência violará a si mesma, num horror definitivo e final.

*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA EM 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Opinião por Flávio Tavares