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Opinião|Ameaça externa e defesa nacional

A realidade de segurança que ora se apresenta no mundo deve servir como um ‘wake-up call’ para o Brasil.

Atualização:

Desde o início da guerra da Rússia com a Ucrânia, líderes do Ocidente expressam perplexidade diante do fato de que, em pleno século 21, a guerra clássica entre Estados tenha ressurgido de forma tão virulenta, em pleno teatro europeu, relembrando um passado não tão distante.

Dedicados a uma agenda internacional que há décadas vem priorizando temas como meio ambiente, direitos humanos e perspectiva de gênero, os principais atores ocidentais parecem resistir ao fato de que mecanismos de dissuasão e balança de poder, por muitos considerados superados, venham a impor-se sobre avanços recentes nos planos das ideias e valores, conquistados pelas democracias liberais desde o fim da guerra fria.

A inquietação que a guerra na Ucrânia tem gerado ao redor do mundo faz-se sentir com particular ênfase nos países da Europa central, que há pouco mais de 30 anos eram parte integrante do Pacto de Varsóvia. É o caso da Hungria. Do lado perdedor nas duas guerras mundiais, ocupada por forças soviéticas no final da Segunda Guerra e, novamente, em 1956, o país não contou com nenhuma ajuda de fora. Hoje, diante dos eventos recentes junto de sua fronteira, os húngaros consideram que têm razões de sobra para validar os preceitos hobbesianos da escola realista, segundo a qual o poder militar é o mais importante elemento quando o que se encontra em jogo é a própria sobrevivência do Estado.

Os planejadores húngaros de defesa conhecem bem as circunstâncias geopolíticas do país e de seus vizinhos da Europa central, tendo presente que muitas vezes, ao longo da História, alianças e arranjos de segurança deixaram nações entregues à sua própria vulnerabilidade. A Hungria passou, assim, ao perceber o ímpeto crescente do nacionalismo russo, a concentrar esforços e recursos no desenvolvimento de uma capacidade própria de autodefesa.

Apesar das marcantes diferenças de natureza geopolítica entre os dois países, há lições a serem aprendidas pelo Brasil.

Assim como faz a Hungria, a agressão interestatal em curso torna premente um amplo exercício de revisão da estrutura nacional de defesa, de modo a possibilitar ao Brasil fazer frente a contingências de natureza militar que possam vir a se materializar num ambiente internacional claramente mais inseguro e imprevisível.

Há 150 anos sem se envolver em qualquer conflito armado com seus vizinhos, o Brasil tem experimentado um longo período de paz. Essa circunstância tem levado políticos e tomadores de decisão a considerarem desnecessária a manutenção de um dispendioso aparato militar, levando-os, assim, a direcionar as Forças Armadas para diferentes funções que não lhes competem, tanto na esfera da segurança pública como em atividades subsidiárias, com o consequente comprometimento da capacidade operacional.

A ausência de inimigos evidentes não significa, contudo, que estes não possam materializar-se a qualquer momento, sob a forma tanto de um Estado como de uma coalizão de Estados, e o Brasil deve poder contar com Forças Armadas dotadas de capacidade adequada para atuar rapidamente, e de forma eficaz, em diferentes cenários.

A realidade de segurança que ora se apresenta deve servir como um wake-up call para o Brasil, que necessita urgentemente conferir maior impulso a projetos-chave, como o submarino de propulsão nuclear, o veículo lançador de satélites, uma nova geração de blindados adequada às condições brasileiras, maior preparo em matéria de segurança cibernética, bem como maior estímulo à indústria nacional de material de emprego militar.

Além dos investimentos tão prementes nas áreas social e de infraestrutura, o Brasil não deve descurar da capacidade de autodefesa, o que poderá, em contexto internacional volátil, representar riscos inaceitáveis no futuro. É preciso que o País esteja minimamente preparado para se defender de ataques externos provenientes de terra, mar e ar.

De outra parte, as Forças Armadas brasileiras, cujo comprometimento e profissionalismo são inquestionáveis, devem fazer a sua parte em termos de atualização conceitual, abandonando atitudes corporativas individuais e adotando preceitos doutrinários que valorizem a interoperabilidade, o desdobramento rápido de forças conjuntas em qualquer ponto do território e fora dele, bem como a agilidade no processo de tomada de decisão.

A defesa nacional não é assunto do interesse apenas de militares, mas sim da sociedade como um todo. As grandes linhas da defesa nacional, definida com parâmetros estratégicos claros, em sintonia com a política exterior e mediante esforço multidisciplinar envolvendo setores militares e civis interessados, sem viés político-partidário, são fundamentais para que o Brasil seja forte e respeitado.

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EMBAIXADOR DO BRASIL NA HUNGRIA, PARTICIPOU DA ELABORAÇÃO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DA POLÍTICA DE DEFESA NACIONAL, EM 1996

Opinião por José Luiz Machado
Costa