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O sociólogo Paulo Delgado escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Amigo da onça

Seja moto, arma, foice ou martelo, a sociedade democrática não aceita tais símbolos de poder

Atualização:

Presidente, se tem aversão ao trabalho intelectual, supõe que o conhecimento é facilmente atingido. Tendo conseguido êxito sem adquirir cultura, não se contenta em ser limitado, mas exalta o sucesso de sua deficiência. Consagra a regra: não adianta ensinar ao ignorante coisa nova. Se no poder é adulto na maldade e infantil no pensamento, o modelo da democracia parlamentar corrige falhas de Executivo autoritário.

Os militares também costumam entender mal seu prestígio, deixando-se levar pelo fragor do elogio. Negligenciando sua força, que vem da farda e do comandante, ameaçam a própria carreira e a autodeterminação do País. O longo calor do Haiti deixou segredos e querelas sobre os limites legais de um exército regular.

As Forças Armadas sabem que constitucionalmente, no próprio território, não são nem força de paz nem de ocupação. Levados por amigo da onça, não só leem errado seu estatuto como partilham da intromissão do governo na ordem militar. Um fato assustador de declínio funcional, que deveria alertar a cúpula para a dissociação entre a elite política e intelectual do País. A angústia do presidente é outra e tem explicação psicanalítica.

Seu inconsciente, ausentes as boas lembranças do passado militar, se movimenta com insistência para fazer ouvir o que foi recalcado. É o esquecimento que o motiva, não a memória. Se ele encontra apoio para a percepção errada que tem dos seus erros quando serviu, só a condescendência de militares da ativa o tira da condição de fogo de artifício. Se um superior é capaz de fazer alguém mentir por ele, é possível supor que subordinados poderão mentir por si mesmos.

Além do excesso de estupidez diante da pandemia, o decreto presidencial 10.727, do mês passado, é uma verdadeira ameaça ao conceito de Forças Armadas regulares ao transformar cargos civis em cargos de natureza militar. Militares da ativa desviados de função não são soldados e Força desfalcada de quadros abre espaço para a privatização dos quartéis. A prova de que a inquietação da vida civil não faz bem a um militar é o uso inadequado de notas oficiais a políticos. Tornando inconsistente sua estabilidade profissional, enfrentam mal desvios apurados.

Não é o Parlamento que conspira contra a boa ordem e a autoridade. Não há uma nova situação constitucional. Por isso, em profecia sombria, se as Forças Armadas confundirem comando supremo com mimetismo deixarão de se parecer com si mesmas.

Muito do curto-circuito vem do nivelamento para baixo imposto ao País: o despreparo da lei para deter quem nega o pânico da peste que nos assola. Estamos apagando o conceito de mal em todas as atitudes, sem freios para proteger a realidade de um povo ausente das decisões sociais e econômicas. O governo ainda conta com a boa vontade de uma deriva interpretativa das consultorias, apóstolos da bolsa, voando acima de costumes civilizados. Analistas de um mercado em apuros fingem traduzir como baixa percepção de risco a separação entre a má ética da política e a baixa estética da economia. Ó Gálatas inconscientes, quem vos enfeitiçou?

É verdade que nem toda pessoa rude tem natureza malévola. Mas no poder, se sua mente deixa de lutar contra seus modos, leva o país a um rebaixamento humilhante à custa de suas particularidades. A democracia é que bota limite em gente cheia de prazeres próprios.

O enigma do presidente é conhecido: acabar com o sistema de três Poderes. A chave para entendê-lo são fobias do passado. O risco é óbvio: adiar a saída de comandante naufragante é se curvar à tempestade.

Governantes passam, o Estado fica. Ainda que a irritação que causa sua personalidade pareça de mosca picando cavalo de raça, ele está assustando. E susto grande desequilibra e machuca o País.

O ressentimento perseverante se ampliou. Agora temos esse pesadelo sobre duas rodas cujo modelo espiritual que projeta não é bom. O desenho dos estereótipos que evoca é medonho, uma falha na tradução da responsabilidade do poder e do lugar da masculinidade. Fetiche infantil, desaconselhado por motoclubes, com todos os riscos para quem vem de trás. O motociclista, como signo, não reconquistará a juventude se fazendo expressão de poder arbitrário.

É bom saber que toda paixão contém uma esperança dentro de uma incerteza. Se tudo o que amantes obstinados de alguma coisa fantasiam acontecesse, nada restaria de felicidade para a maioria. Expectativas injustificáveis ou insustentáveis são impróprias de se manter pelo risco que é formar um mundo de frustrados furiosos.

Seja moto, arma, foice ou martelo, a sociedade democrática não aceita tais símbolos de poder. A realidade é mais complexa e contém aspectos econômicos e psicológicos em que o individualismo exacerbado é limite para a boa consciência. O referencial humanista de paz e prosperidade exige discernimento.

E discernir é não carregar do outro a víbora no seio. Não há mais dúvida dos desejos envenenados. Resta à democracia dar aos atos correspondentes a magnitude proporcional.

SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGADO.COM.BR

Opinião por Paulo Delgado
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