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Advogado e Jornalista

Opinião|As luzes do Largo de São Francisco

Sempre, mas especialmente em tempos de incivilidade e afronta à democracia, é oportuno ouvir as histórias das Arcadas.

Atualização:

Primeira faculdade instalada no Brasil – suas atividades iniciaram-se no dia 1.º de março de 1828 –, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco foi objeto de vários estudos históricos e sociológicos. Recentemente, sua bibliografia ganhou mais uma obra: Fatos e Fitas. Crônicas sobre o Largo de São Francisco (Ed. Migalhas, 2022), de Antonio Cláudio Mariz de Oliveira. Trata-se de um livro afetivo, em que o autor, formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, reverencia a faculdade onde estudou seu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior. “Quando vim à Terra, meu pai cursava o terceiro ano. Estive presente à sua missa de formatura”, conta Mariz.

Além de trazer histórias da vida acadêmica no século 19 – como as desavenças entre o primeiro diretor das Arcadas, José Arouche de Toledo Rendon, e o primeiro professor, José Maria de Avellar Brotero –, Fatos e Fitas representa um singular reconhecimento do profundo impacto que o Largo de São Francisco produziu sobre São Paulo e todo o País. É o olhar de quem, sem ter sido aluno das Arcadas, acompanhou de perto sua história: seus fatos e suas fitas. Nutrindo grande admiração pela faculdade cuja inauguração considera o “marco inicial de nossa independência cultural”, Mariz deseja contribuir para preservar o espírito acadêmico e as tradições do Largo de São Francisco; entre elas, “a boêmia, a irreverência, a permanente alegria de viver, a dedicação à poesia e à música, as disputas ideológicas, a adoção das causas libertárias, a solidariedade”.

Sempre, mas especialmente em tempos de incivilidade e de afronta à democracia, é oportuno ouvir as histórias das Arcadas. Entre suas paredes, encontra-se a origem de muitas transformações sociais, culturais e políticas do País. Ao longo dos anos, forjou-se um espírito acadêmico comprometido, diz Mariz, “com a liberdade, com o culto do espírito, com o humanismo, com a poesia, com a solidariedade, com o amor ao próximo, com a justiça social”.

A história do Largo de São Francisco é prova do papel decisivo da educação numa sociedade. As ideias movem o mundo, transformam as pessoas, questionam as estruturas vigentes, oxigenam a vida. “A Academia foi palco e núcleo propulsor de ideias e ideais de liberdade desde a sua instalação. (...) Nos primeiros anos da Faculdade, a doutrina dos iluministas, dos enciclopedistas, das Revoluções Americana e Francesa que se expandiram no mundo da época, foi disseminada entre os estudantes. Nesse momento surgiram os primeiros escritos dos estudantes divulgando tais pensamentos, que, na verdade, representaram os primeiros germes da Abolição e da República”.

Tudo isso ocorreu graças ao ambiente de estudo e de debate livre, aberto ao contraditório. Mesmo tendo o Largo de São Francisco constituído um dos primeiros núcleos organizados da luta contra a escravidão, “não eram poucos os acadêmicos contrários à abolição”, o que provocava desavenças que, “por vezes, se transformavam em dissensões irreconciliáveis”. Também eram famosas as discussões em torno da forma de governo. Entre docentes e discentes, sempre houve notórios monarquistas.

O livro evidencia que os frutos de uma instituição universitária transbordam sobre toda a sociedade. Os seus alunos não são os únicos beneficiados por ela. Muitos jornais, publicações literárias e obras políticas foram editados por estudantes do Largo de São Francisco. Destaca-se também a profunda relação entre a faculdade e as livrarias, elemento essencial de uma sociedade livre. Nos meados do século 19, “uma das maiores e mais bem surtidas era a Garraux. Tornou-se um centro de confluência de professores e de estudantes. (...) Seus frequentadores estavam sempre prontos ao intercâmbio de ideias, às discussões políticas e à troca de experiências literárias”.

A história do Largo de São Francisco – que também inclui sombras: preconceitos, transigências com injustiças e outras contradições com os ideais de liberdade e igualdade – é parte importante da história do País. Não é preciso endeusá-la, mas conhecê-la. Se hoje existe um olhar crítico, avesso a ufanismos e ingenuidades, sobre nossa trajetória enquanto sociedade, questionando e ressignificando muitos aspectos do passado e do presente do País, isso se deve, em boa medida, à instalação dos cursos superiores em território brasileiro, cujo primeiro passo foi dado nas Arcadas.

Cada geração tem seus desafios. Os atuais parecem cada vez maiores. Há um país não apenas desigual, racista e violento, com muitas famílias em situação de miséria, como existe uma sociedade tolerante com a pobreza, a desigualdade, o racismo e a violência. Os obstáculos são imensos. Mas não é um começar do zero. O trabalho dos que nos precederam, preservado e cultivado em instituições como a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, proporciona luzes importantes. No próximo dia 11, elas terão um brilho especial, com a leitura nas Arcadas da nova Carta às Brasileiras e aos Brasileiros. Não as desperdicemos.

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ADVOGADO, GRADUOU-SE NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) E É MESTRANDO EM DIREITO PENAL NA FACULDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO (USP)

Opinião por Nicolau da Rocha Cavalcanti
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