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Pesquisador em Educação e doutor em Economia pela Universidade Vanderbilt (EUA), Claudio de Moura e Castro escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|As sagas de dois pintores

O austríaco pôs em risco valores da civilização ocidental, mas foi o inglês quem impediu esse desastre

Atualização:

Dois pintores viveram na mesma época. Diferentes em muitos aspectos e semelhantes em outros. 

Um era austríaco, de família bem modesta. Cabeça atrapalhada, chegou a morar em abrigos para mendigos. Considerava-se um pintor genial.

Era autodidata, mas tinha grandes aspirações profissionais. Não obstante, por duas vezes, levou bomba no vestibular da Academia de Belas Artes de Viena. Foi considerado “inapto para pintura”. Críticos de arte jamais levaram a sério seus quadros. Diante do fracasso, sua carreira como pintor esmoreceu. Foi cuidar de outros assuntos.

O outro era inglês, também autodidata, porém, aristocrata puro-sangue. Pintava por deleite pessoal e para espantar as preocupações. De resto, prezava pouco seus talentos artísticos. Não vendia seus quadros. Nas poucas exposições em que participou, entrou com pseudônimo. Apesar disso, críticos de arte julgam que poderia haver feito uma bela carreira profissional como pintor. Curiosamente, era também pedreiro amador.

Seu estúdio havia sido construído por ele. Tal como o austríaco, optou por outros afazeres.

O pintor austríaco, gravemente, pôs em risco os valores da civilização ocidental. Mas foi o pintor inglês quem impediu esse desastre.  Nesse momento, os leitores já terão decifrado a charada. O pintor austríaco se chamava Adolf Hitler e o inglês, Winston Churchill. 

Como podem pequenos incidentes empurrar a história em direções imprevisíveis? Um anarquista sérvio, apesar da pontaria ruim, fuzila o arquiduque austríaco, desencadeando a 1.ª Guerra. Quem sabe, se o examinador do dia fosse outro, Hitler entraria na Belas Artes? E se Churchill houvesse virado pintor profissional? Quem seguraria Hitler? Subjuntivos contra factuais são duvidosos, mas como resistir à tentação? 

Frustrado pelo fracasso artístico, Hitler foi tentar outros caminhos. Acabou na política. De início, não era levado a sério. Por pretender um alto cargo no governo, teve uma entrevista com o kaiser. Não impressionou. Poderia, no máximo, aspirar à direção de uma agência de correio. Contudo, capitalizou nas cicatrizes emocionais da 1.ª Guerra. Conseguiu remendar a autoestima dos alemães. Isso permitiu à Alemanha um espantoso surto de progresso. 

No seu pangermanismo, queria mais terras para a raça ariana, superior. Cobiçava a Europa. Foi o responsável pelo Holocausto, em que pereceram 6 milhões de judeus. Ao fim e ao cabo, foi derrotado por sua arrogância desmedida.

Inicialmente, teve extraordinário sucesso nas suas empreitadas militares. Rapidamente, conquistou quase todos os países da Europa. Invadiu a Rússia e tinha planejada a invasão da Inglaterra, o único país europeu que faltava.

Mas eis que entram em cena dois obstáculos. O primeiro foi a sua crença na própria competência militar. Assim como se considerava um grande pintor, via-se como um grande estrategista. E não era. Cometeu erros pavorosos, ao arrepio dos seus excelentes generais, de quem tinha uma profunda desconfiança. E vice-versa. O oficialato alemão era profissional e aristocrático. Ele não passou de sargento na 1.ª Guerra. Na derrota em Stalingrado, ordenou ao general Paulus que se suicidasse. Responde o altivo militar: não recebo ordens de sargento!

O segundo obstáculo foi o pintor Winston Churchill, que se revelou à altura da missão de enfrentar o Terceiro Reich. Tinha formação militar, com ampla experiência de combate. E também uma longa carreira na política e em cargos públicos importantes. Nas entressafras, era pintor, jornalista e escritor. 

Segundo biógrafos – como Boris Johnson –, nenhum político inglês colecionou tantos desastres fragorosos na sua carreira. Começou com o fracassado desembarque em Gallipoli, na 1.ª Guerra. E muitos outros se seguiram. 

Em 1940, o exército alemão estava próximo a Moscou. A França afundava a uma velocidade embaraçosa. Duzentos mil soldados ingleses encurralados em Dunquerque. Políticos ingleses flertando com Hitler a busca de um acordo vergonhoso. 

Com sua reputação errática, estava politicamente enfraquecido. Mas, por falta de opções, vira primeiro-ministro. Assume um país inseguro e dividido. 

Tinha pouco tempo para evitar que Dunquerque se transformasse na maior catástrofe do Exército britânico. Conseguiu. Com maestria, manejou a guerra e a cabeça dos ingleses. 

Hitler suicidou-se no seu bunker em Berlin. Churchill saboreou a vitória. Mas, antecipando-se a todos os estadistas da época, previu a ameaça comunista. Há quem considere haver sido o único personagem do século 20 que soube entender as lições da história.

Na saga de um pintor amador contra um outro, vence Churchill. Salva, assim, nada menos do que a civilização ocidental – pelo menos a que conhecemos.

A história segue tendências previsíveis, mas é salpicada por eventos insignificantes que podem mudar seu curso. Se o pintor austríaco houvesse sido aceito na Belas Artes, a história do mundo teria sido diferente? E se o inglês houvesse optado por uma carreira de pintura, a história do mundo também seria diferente?

M.A., PH.D., É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO

Opinião por Claudio de Moura Castro
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