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Dom Odilo Scherer, arcebispo metropolitano de São Paulo, escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Caminhos para a paz

Ela não pode ser apenas um desejo piedoso, mas uma tarefa de todos no enfrentamento dos reais problemas da humanidade.

Atualização:

A paz é um bem imprescindível para viver este novo ano, apenas iniciado. Para a Igreja Católica, o dia 1.º de janeiro é comemorado como o dia mundial da paz, e o papa Francisco enviou ao mundo sua mensagem de paz, como costuma fazer todos os anos. Nela, o pontífice reflete sobre as graves questões que hoje ameaçam a paz e também sobre os caminhos para a construção da paz, entendida como um dom que devemos pedir a Deus, mas também como fruto de um esforço compartilhado.

Três são as indicações para a edificação da paz: o diálogo entre as gerações, a educação e o trabalho. As crises que enfrentamos, como a pandemia e as incertezas econômicas, poderiam levar a uma espécie de “salve-se quem puder”, deixando fora dos mundos privados, seguros e privilegiados quem é mais frágil e menos capacitado para acompanhar as exigências da realidade. Lamentavelmente, nessas situações de crise, aumentam a pobreza, a insegurança e a violência, que são ameaças à paz.

A crise sanitária levou muitos a experimentarem uma solidão angustiante. Ao mesmo tempo, de maneira surpreendente, houve um despertar expressivo de iniciativas de solidariedade e compaixão em relação às pessoas mais duramente golpeadas pelo sofrimento. É nas situações de maior sofrimento que muitos corações se desarmam e se abrem para o encontro com o próximo, para ouvir, dialogar e ajudar o próximo. Será que essas mesmas atitudes não poderiam ser mais cultivadas nos momentos de felicidade, para prevenir dolorosas crises, sejam elas quais forem?

Mais do que nunca, faz-se necessário restabelecer uma base de confiança recíproca para o diálogo sincero. E Francisco aponta o diálogo entre as gerações, que tem seu primeiro ambiente no convívio familiar, na educação desde a infância, como caminho para cultivar a paz. Este mesmo diálogo também deve estender-se à vida social, política e econômica, em que a experiência e a serenidade de uns confrontam-se com a inquietude e o entusiasmo de outros. A reivindicação unilateral de atenções pode ser motivo de desequilíbrios e quebra da necessária solidariedade e paz social.

“A educação fornece a gramática do diálogo entre as gerações”, afirma o papa (n.º 2). E lamenta que, em todo o mundo, os governos tenham diminuído nestes últimos anos os investimentos em instrução e educação, enquanto aumentaram as despesas com armas e despesas militares. Quando a educação é entendida como despesa, em vez de investimento, não há boas perspectivas para a vida dos povos e o futuro da paz. E o papa retoma uma preocupação que tem manifestado com frequência sobre a qualidade e os rumos da educação, fazendo apelo em favor de um novo “pacto educativo global”.

A educação não deveria ser orientada pelo objetivo utilitarista da produção de bens economicamente quantificáveis, mas, acima de tudo, para a humanização e o desenvolvimento da cultura do cuidado. O pacto educativo global, orientado por um novo paradigma, deveria priorizar a formação integral de pessoas maduras, sensíveis e atentas umas às outras. Nele deveriam estar envolvidas as novas gerações, famílias, comunidades locais, instituições educativas, religiões, a sociedade civil em geral e os governos. A boa educação é fundamental para a promoção dos valores inerentes à dignidade humana, à fraternidade, à justiça, ao desenvolvimento sustentável e à ecologia integral. Sem isso não há paz verdadeira e duradoura.

O terceiro caminho indispensável para construir e preservar a paz, conforme a mensagem do papa, é o trabalho. A pandemia incidiu pesadamente no mundo do trabalho, levando à extinção de milhões de postos de trabalho. Sem contar as imensas populações que já vivem da economia informal e sem seguridade social, o trabalho em geral ficou muito mais precário. As multidões de desempregados e as levas de migrantes, obrigados a abandonar suas terras e países em busca de trabalho e melhores condições de vida, clamam por atenção e ajuda. É preocupante, na atual crise econômica, a situação do trabalho seguro e justo no mundo inteiro. Francisco tem motivos para estar preocupado e para chamar a atenção do mundo: apenas um terço da população mundial em idade laboral goza de um sistema de proteção social ou usufrui dele, ainda que seja de forma limitada.

O trabalho é a base para a edificação da justiça e da solidariedade, e este quadro do mundo do trabalho pode se tornar explosivo, não contribuindo para a paz. Sem condenar o progresso tecnológico, é inquestionável que ele leva à supressão de inúmeros postos de trabalho. É preciso, pois, que haja a busca de uma solução para a crescente falta de oportunidades para o trabalho. E o papa clama pela união de esforços para promover em todo o mundo condições de trabalho decentes e dignas, para que cada ser humano em idade produtiva tenha a possibilidade de trabalhar. A paz não pode ser apenas um desejo piedoso, mas uma tarefa de todos no enfrentamento dos reais problemas da humanidade. Especialmente de quem mais sofre.

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CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Opinião por Dom Odilo Pedro Scherer
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