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Opinião|Caos é estratégia eleitoral de Trump

Negação da pandemia e da mudança climática reforça munição do democrata Joe Biden

Atualização:

Em outros tempos, a participação recorde de eleitores esperada na disputa presidencial de 3 de novembro era celebrada como prova da vitalidade da democracia nos Estados Unidos. Não mais. As reiteradas declarações do presidente Donald Trump de que só aceitará resultado que lhe for favorável, e denunciará fraude orquestrada por seus adversários se perder para o ex-vice-presidente Joseph Biden, são agora prenúncio de uma crise traumática, que dividirá ainda mais um país já rachado e porá em dúvida a legitimidade do resultado e da própria democracia americana.

Esse desfecho não incomoda Trump, um narcisista com óbvia vocação autocrática que já afirmou ser ele, pessoalmente, a única solução para os problemas do país. A construção desse cenário catastrófico vai adiantada. Ciente de que uma proporção recorde dos 255 milhões de americanos habilitados em tese a votar o farão por correspondência, por causa da pandemia, Trump nomeou um empresário de sua confiança para comandar o Serviço Postal e denunciou planos de seu adversário para interferir na apuração dos votos enviados pelo correio. Tal manobra é impossível de ser realizada, segundo os especialistas no assunto, porque as eleições são descentralizadas e realizadas pelos governos estaduais e locais. Mas Trump atingiu seu objetivo, que era criar dúvida sobre a lisura da votação e da apuração – sobretudo a dos votos por correspondência, que representaram 25% do total na eleição de 2016 e devem superar 50% este ano.

As pesquisas indicam que a proporção de eleitores que comparecerá à urnas, ou enviará seus sufrágios pelo correio, ou os depositará em lugares predeterminados poderá superar os 60% – recordes registrados nas três votações dos anos 1960, quando os americanos estavam divididos como hoje, pela Guerra do Vietnã, e pelos conflitos raciais nas cidades causados pelo movimento de afirmação dos direitos civis dos negros.

As sondagens de opinião situam Biden na dianteira da votação popular e da disputa dos 538 votos do colégio eleitoral (distribuídos proporcionalmente à população dos Estados). A ex-secretária de Estado Hillary Clinton, que obteve quase 3 milhões de votos a mais do que Trump na votação popular em 2016, mas perdeu para ele no colégio eleitoral por uma diferença de 70 mil votos somados em três Estados, exortou o candidato democrata a “não conceder a eleição em hipótese alguma”.

Os dois partidos mobilizaram legiões de advogados para travar batalhas judiciais nos Estados, que podem durar semanas. Suprema ironia, se elas de fato ocorrerem e não forem resolvidas até 20 de janeiro, a data prevista para a posse, a presidente da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi, que não esconde seu desprezo por Trump, assumirá a presidência até que se resolva a disputa. Nas 58 eleições presidenciais realizadas desde 1788, a inversão dos resultados da votação popular e do colégio eleitoral aconteceu apenas cinco vezes: três no século 19 – antes da adoção de leis e emendas constitucionais que tornaram universal o direito ao voto – e duas nos últimos 20 anos. Em 2000 a Suprema Corte decidiu a favor do republicano George W. Bush, 35 dias depois da votação, em razão da disputa sobre algumas centenas de sufrágios contestados na Flórida.

A estratégia de Biden é lembrar ao país que a economia foi para o buraco e quase 200 mil americanos sucumbiram até agora à covid-19 por causa da incapacidade de Trump de admitir e confrontar a pandemia, um tema que ele abandonou. O argumento de Biden foi validado por várias entrevistas que Trump deu ao jornalista Bob Woodward, do Washington Post, para um livro, no qual afirmou que sabia desde o início da letalidade do vírus, mas não alertou os americanos para não criar pânico. Devastadores incêndios florestais em curso na Costa Oeste e a intensificação da temporada dos furacões na Costa Leste reforçam o argumento do candidato democrata sobre o custo para o país do negacionismo de Trump sobre a realidade das mudanças climáticas.

A favor do democrata há também a deserção crescente de republicanos influentes. Outro mau sinal para o presidente é a preferência dos militares por seu adversário, refletida em documentos assinados por dezenas de ex-generais e em sondagem recente do jornal Military Times, segundo a qual os fardados preferem Biden a Trump por 41% contra 37%. Mudanças demográficas desde 2016 também ajudam o democrata. Pesquisa recente da rede de televisão PBS mostrou que o número de eleitores com baixa escolaridade entre os brancos diminuiu 4% desde 2016. E desapareceu a diferença de 9% que existia quatro anos atrás entre estes, de um lado, e, de outro, os eleitores brancos com formação universitária e hispânicos, ambos mais inclinados a Biden. 

Nesses dados pode estar a chave da vitória democrata. A favor de Trump há seu talento midiático e sua inesgotável propensão a contar mentiras e meias-verdades, como fez mais de 20 mil vezes desde sua posse, e usar o púlpito presidencial para propagá-las.

JORNALISTA, É PESQUISADOR SENIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON

Opinião por Paulo Sotero