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Opinião|Combater as causas da criminalidade

Na nossa gestão colaboramos, sem dúvida, para a queda dos homicídios no País

Atualização:

A vida humana é o maior valor de uma sociedade e o menor para o mundo do crime. Essa síntese se materializa de forma mais perversa no sistema operacional do crime organizado que domina territórios e presídios.

Com o primeiro, elege representantes políticos e formaliza sua presença, com todas as prerrogativas do mandatário eleito – incluída a de efetivar nomeações em todos os níveis da estrutura do poder público. No segundo caso, é o juiz do destino da parcela majoritária da terceira maior população prisional do mundo – os mais de 812 mil detentos em nossas prisões. Os presídios, por sua vez, tornaram-se centros de recrutamento das facções criminosas pela brutal razão de que o Estado não garante a vida dos que lá estão. São apenados obrigados a buscar segurança nas facções para não morrerem, trocando proteção por submissão integral.

No Rio de Janeiro, onde essa realidade é mais visível e aguda, milicianos e traficantes controlam 830 comunidades, onde vive 1,5 milhão de pessoas. Os criminosos têm o controle do território, o controle do voto, elegem suas bancadas na Câmara Municipal, na Assembleia Legislativa, até no Congresso Nacional, e garantem a indicação de pessoas para ocuparem cargos públicos, mesmo na área de segurança. É o que venho chamando há tempos de “coração das trevas”.

Como o Estadão já demonstrou, as milícias não são privilégio do Rio, mas são encontradas em 23 dos 27 Estados da Federação. E todas, sem exceção, são formadas e/ou comandadas por policiais da reserva ou da ativa. Isto é, o poder público treina e forma agentes públicos de segurança que adiante se desviam para o crime e lá exercem as competências adquiridas com o dinheiro do cidadão contribuinte.

Tivemos sete Constituições e em nenhuma delas o governo central deteve responsabilidades com a segurança pública – desde a primeira, de 1824, até a última, de 1988.

O peso da segurança pública é dos Estados, que respondem por 81% do gasto total – o governo federal, 12% e os municípios, o restante. Destaque-se que todas as áreas sociais constantes da Carta de 88 se constituíram em sistemas liderados e compartilhados pelo governo federal e se organizaram em ministérios. Menos a segurança pública, salvo nos 11 meses de existência do Ministério da Segurança.

Estado algum, por óbvio, teve ou tem poderes ou recursos para definir e implantar um sistema nacional ou uma política nacional de segurança. Portanto, nunca tivemos nem sistema nem política, até o advento do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), em 2018, no governo Temer.

Enquanto tal “acefalia federativa” se perpetuava, o crime organizado se nacionalizava e internacionalizava. Das mais de 70 facções do crime organizado de base prisional, ao menos meia dúzia é nacional e avança em países vizinhos.

Nosso debate nacional, no entanto, se limita à repressão: mais polícias, mais armas, mais veículos, penas mais duras, etc. Porém uma política nacional de segurança integral começa na prevenção social, passa pela repressão qualificada e não pode desviar os olhos da calamidade que é nosso sistema prisional, que prende muito e mal – 48% dos crimes são de furto, roubo ou receptação e 12%, de homicídio.

Diante disso, a polêmica sobre quem tem o crédito pela queda dos homicídios é pobre e desnecessária. Ela se iniciou em 2018 (ano eleitoral, em que, sabiam os governadores, a segurança seria decisiva) e seguiu caindo em 2019. Porém o protagonismo não é do governo federal, anterior ou atual, é dos Estados.

Na nossa gestão colaboramos, sem dúvida, para a queda dos homicídios, com ações como o Susp, a criação de um sistema e uma política nacionais de segurança, que nunca tivemos anteriormente.

Ainda fizemos a vinculação de recursos das loterias ao Fundo Nacional de Segurança e alocamos R$ 90 milhões para a digitalização dos 2 milhões de processos da Justiça penal, idem para a biometria de toda a população carcerária, dentre muitas outras ações.

São fundamentos importantes, mas para enfrentar o problema na sua amplitude é preciso focar a política pública de segurança nas seguintes questões: 1) implantar um amplo programa de prevenção social focado na juventude das periferias, sobretudo jovens negros e pardos, fora da escola e sem trabalho, vivendo em famílias desestruturadas; 2) reformar o nosso caótico sistema prisional, reduzindo o superencarceramento, ampliando as unidades do semiaberto, dando chance de estudo e formação profissional aos apenados e ampliando programa nacional de egressos que nós deixamos; 3) extirpando as indicações e promoções políticas nas polícias, instituindo efetivamente a promoção por mérito, tornando as corregedorias autônomas e com estrutura, fortalecendo o controle externo e instituindo processo eficiente e rápidos nos casos de crimes violentos e corrupção, além de focar na inteligência policial; 4) rever a atual política de drogas, em especial definindo o quantum limite para o porte de drogas por usuário.

* RAUL JUNGMANN FOI MINISTRO DA DEFESA, DA SEGURANÇA PÚBLICAE DA REFORMA AGRÁRIA