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Jornalista, É Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington

Opinião|Convergência perversa entre Brasil e EUA

Decisão da Suprema Corte que acabou com garantia federal ao aborto pode levar a um novo terrorismo contra as mulheres.

Atualização:

Durante mais de três décadas, diplomatas brasileiros e americanos, políticos, estudiosos das relações internacionais e jornalistas sustentaram que, a despeito das diferenças, o Brasil e os Estados Unidos compartilhavam valores que tornavam seus interesses mais convergentes do que divergentes. Os fatos confirmaram a tese, mas não pelas razões que supúnhamos inspirar a convergência, ou seja, o aprimoramento das democracias nos dois países. Em ambos, a democracia andou para trás.

A demolição realizada por Jair Bolsonaro só não foi maior porque o dano causado por sua incompetência e sua má-fé gerou a resistência que, a julgar pelas sondagens de opinião, o removerá do poder nas eleições de outubro. Nos Estados Unidos, os efeitos destrutivos do governo de Donald Trump, inspiração de Bolsonaro, estão apenas começando.

Tendo elevado três ministros ultraconservadores à Suprema Corte, depois que um Senado republicano atropelou as regras e barrou a nomeação de um juiz escolhido por seu antecessor, o democrata Barack Obama, Trump deixou como herança uma maioria conservadora na Suprema Corte que acaba de detonar três bombas atômicas legais em áreas já conflagradas numa sociedade dividida: o aborto, as mudanças climáticas e o porte de armas de fogo.

As decisões, apoiadas por cinco dos nove ministros do tribunal máximo do país, no final de junho, revogaram jurisprudência federal de meio século que protegia o aborto legal como parte do direito das mulheres à privacidade, retiraram autoridade à Agência federal de Proteção Ambiental para regular emissões de carbono na atmosfera, causadoras das mudanças climáticas, e liberaram o porte de armas em público, isso num país onde já circulam perto de 400 milhões delas e seu uso, inclusive contra crianças e adolescentes em escolas, repete-se com espantosa frequência.

Eugene Robinson, editor associado do Washington Post e ex-correspondente do jornal na América do Sul, resumiu o significado das decisões num artigo no qual descreveu seus autores como membros de uma “junta”, no sentido das juntas dos regimes ditatoriais da América Latina. Ocupam cargos vitalícios e não devem satisfação a ninguém por suas decisões, que são irrecorríveis. As piores decisões da junta ainda podem estar por vir.

O juiz Clarence Thomas, o único negro do grupo, adiantou em voto à parte na questão do aborto que a decisão deve inspirar outras, como a proibição do uso de pílulas anticoncepcionais, do casamento entre pessoas do mesmo sexo e, obviamente, de relações sexuais entre elas.

Sempre na vanguarda da retaguarda, o Brasil antecipou-se nos três temas das decisões do Supremo americano. Como sabemos, as leis que regulam o porte de armas no País são mera formalidade, sem efeito para ricos ou pobres interessados em possuí-las e usá-las pelo motivo que for. Bolsonaro é adepto da tese da direita americana segundo a qual a melhor defesa contra um criminoso é uma pessoa de bem com uma arma na mão. Na questão das emissões, o atual governo é campeão. Fez e faz o que pode para levar adiante sua obra de devastação da Amazônia e arruinar o País como potência ambiental que poderia e deveria ser.

Quanto ao aborto, trata-se de prática proibida desde sempre entre nós, embora esteja brasileiramente liberado para as mulheres com status social, educação e recursos para ignorar a lei ou invocar uma das três cláusulas em que a interrupção da gravidez é permitida: estupro, anencefalia e risco de vida para a gestante. Recentemente, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato favorito nas eleições de outubro, declarou-se favorável à legalização do aborto. Alertado por aliados de que essa atitude lhe custaria votos de católicos e evangélicos, ele esclareceu no mesmo dia que, “pessoalmente”, é contra o aborto. Essa duplicidade pode afetar o prestígio de Lula entre as mulheres no Brasil e em outros países.

O fim da garantia federal do direito ao aborto nos Estados Unidos fez do útero campo de batalha. Os 25 Estados que já puseram em prática leis que proíbem o aborto avisaram que punirão as mulheres que viajarem para Estados contíguos onde a prática segue legal para interromper a gravidez. Militantes de movimentos pró e contra o aborto legal prometem mobilização nas fronteiras para facilitar ou barrar o livre trânsito de gestantes, bem como o comércio interestadual de pílulas abortivas. O presidente Joe Biden, um católico que defende o aborto como direito das mulheres, garantiu que fará tudo em seu poder para garantir o livre trânsito de pessoas e mercadorias entre os 50 Estados do país.

A tensão criada pelas posições dos dois campos foi ilustrada pela governadora de Michigan, a democrata Gretchen Whitmer, que já foi alvo de um plano de sequestro por militantes trumpistas. Em entrevista, publicada na primeira página do New York Times na semana passada, Whitmer contou que pediu às suas duas filhas, de 19 e 22 anos, para deixarem de usar um aplicativo para monitorar seus ciclos menstruais. O temor é de que o site seja violado por militantes antiaborto, as informações vazem nas redes sociais e virem munição contra as usuárias.

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JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON

Opinião por Paulo Sotero
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