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Opinião|Coronavírus, a marcha da insensatez

Apoio de Bolsonaro a si mesmo é mais perigoso que tentativa de Collor de evitar impeachment

Atualização:

O apoio do presidente Jair Bolsonaro a si mesmo nas manifestações de rua de domingo 15 de março poderia ser apenas, por si só, ridículo. Mesmo sendo legítimo. E aqui não me refiro a golpe, autogolpe ou simulacro de golpe. Faltam-lhe apoio e base. Em primeiro lugar, porque nada se configura no horizonte que represente ameaça nesse sentido. Desse ponto de vista, os atos seriam inócuos mesmo que tivessem superado em adesão as manifestações de 2013, que foram espetaculares, mas não impediram a reeleição de Dilma Rousseff, codinome de Lula, do PT, na reeleição de 2014. Em segundo lugar, porque o povo, do qual emana todo o poder, exercido em seu nome, tem direito de apoiar e criticar quem quer que seja em qualquer ocasião ou circunstância. E qualquer cidadão brasileiro – o presidente não seria exceção à regra – pode convocar a cidadania a apoiar ou criticar mandatários.

No princípio Bolsonaro limitou-se a compartilhar num grupo de WhatsApp aviso de convocação dos atos. O mundo desabou sobre sua cabeça, dando-lhe razão num argumento: os políticos, de quaisquer partidos e Poderes, têm medo de povo. E não apenas por causa do capitão reformado nem de seu governo. Aliás, os Fundos Partidário e eleitoral e as emendas parlamentares para governadores e prefeitos correligionários de chefões partidários usarem sem fiscalização para financiar eleições municipais em outubro e novembro nunca mereceram oposição cerrada da cúpula do Executivo. Esta tem sido repetidamente cúmplice dessas iniciativas. Onyx Lorenzoni, bolsonarista de primeira hora e ex-chefe da Casa Civil do governo, fez parte da ampla aliança, que incluiu o PCdoB, velho e leal aliado do PT, na eleição de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara. E continua no primeiro escalão como ministro da Cidadania. A pasta é poderosa e administra recursos milionários. Ele ainda lançou outro correligionário do DEM, Davi Alcolumbre, a presidente do Senado, derrotando o emedebista Renan Calheiros em eleição fraudada, na qual 81 senadores votaram e 82 votos foram computados. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, atua como líder do Senado no governo. E pelo menos em teoria o povo se reuniria contra isso.

Portanto, nada há a obstar sequer à convocação explícita do presidente para os atos, da qual depois recuou após constatar o crescimento exponencial de inoculados pelo coronavírus no avião que o levou a um encontro extemporâneo com o presidente dos EUA, Donald Trump, e em aviões de carreira que levavam outros membros do grupo.

O que o torna ridículo é comparecer a atos para apoiar a si mesmo. Nisso lembrou antecedente que poderia ter evitado: o de Fernando Collor convocando o povo para sair de verde-amarelo às ruas e impedir seu impeachment. O povo manifestou-se a favor do oposto, acorrendo às vias públicas vestindo luto, numa clara declaração contra. Não foi o caso desta vez, mas o chefe do governo poderia ter evitado a fria de confraternizar com manifestantes participando de um apoio a si mesmo. Nada disso, contudo, é relevante como o aspecto sanitário lesivo ao povo e a Deus, que ele disse serem os únicos objetos de seu gesto. Por acaso ele não terá jurado lealdade à Constituição? O povo é a primeira vítima de uma eventual catástrofe sanitária a ser produzida pela conjunção perversa da escassa higiene dos chineses governados por uma ditadura comunista, do populismo estúpido da esquerda italiana e da precariedade da saúde pública brasileira. Ninguém precisa ser teólogo para duvidar do princípio universal de quaisquer religiões monoteístas segundo o qual Deus é sempre vida. Isso quer dizer que, em qualquer circunstância, viver, para o cidadão, é um direito acima do de opinar.

Indo ao encontro dos manifestantes à porta do palácio, e ainda levando de testemunha o presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres, um reles bajulador que teve a audácia de argumentar que tinha ido a palácio para tratar de assuntos particulares, Bolsonaro comprova mais uma vez que governa para seus devotos. E não para todos os brasileiros, como deveria ser. Esse é um grave pecado cívico.

A primeira epígrafe que me ocorreu para este artigo foi o título do célebre tratado histórico sobre guerras escrito por Barbara Tuchman: A Marcha da Insensatez. Mas Aninha Franco me lembrou do último parágrafo de A Peste, de Albert Camus, que aqui cabe como uma luva para encerrar: “Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e nas roupas, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”. Quem quiser que ignore a profecia do Prêmio Nobel de 1957 e espere chegar sua vez. *JORNALISTA, POETA E ESCRITOR