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Opinião|Democracia em risco de desmanche nos EUA

Percalços de Joe Biden alimentam especulações sobre volta de Donald Trump

Atualização:

Antes impensável, a não ser como enredo de ficção, a possibilidade de esvaziamento e colapso da democracia nos Estados Unidos ganhou credibilidade em semanas recentes e virou o enredo principal da cobertura política. Barton Gellman, Pulitzer de jornalismo da revista Atlantic admirado por seus colegas, deu o mote ao escrever, no início de dezembro, que, se a biologia não impedir o ex-presidente Donald Trump de concorrer na próxima eleição à Casa Branca, em novembro de 2024, ele será proclamado vencedor e tomará posse em janeiro de 2025, aos 78 anos, seja qual for o resultado das urnas. 

Que um jornalista da qualidade de Gellman esteja preocupado com o que pode acontecer daqui a três anos é sintomático do pesadelo que o presidente Joe Biden enfrenta para controlar a agenda política e levar adiante seu ambicioso programa de governo — travado antes do Natal por um senador democrata conservador da Virgínia Ocidental, aliado do lobby do carvão mineral, abundante em seu Estado, a pretexto de preocupações fiscais com gastos sociais previstos em projeto de lei de US$ 2 trilhões já aprovado na Câmara de Representantes. 

Ciente do risco de ver seu governo inviabilizado no início do segundo ano do mandato, e tendo à frente um panorama adverso criado pela persistência da pandemia de covid-19 e pelo mau desempenho de seu partido nas eleições legislativas de 2020 (empate no Senado, vantagem exígua na Câmara e o fortalecimento de maiorias republicanas em 36 dos 50 legislativos estaduais), Biden poderá tentar mudar o regimento do Senado para limitar manobras de obstrução parlamentar dos republicanos e salvar ao menos parte de seu programa. Mas as perspectivas são sombrias.

Essa é a conjuntura que deixa apreensivos analistas conhecedores das minúcias da política num país onde não há eleição nacional administrada por um órgão central, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no Brasil; e as disputas se dão em centenas de distritos eleitorais, segundo regras definidas pelos Estados. Mais de 400 dessas regras foram alteradas nos legislativos estaduais controlados por conservadores desde 6 de janeiro passado, quando hordas incitadas por Trump atacaram o Capitólio, a sede do Congresso, para impedir a proclamação da vitória do democrata Joe Biden pelo colégio eleitoral ali reunido. Típica de republiquetas, a insurreição fracassou, mas deixou o mapa para uma nova tentativa. 

É nela que Trump e seus seguidores estão empenhados. Trata-se de fazer um desmanche por dentro da democracia americana. Espantosamente, o plano conta com o apoio maciço dos republicanos ocupantes de postos eletivos. Ele fere de morte o espírito da Constituição, mas não necessariamente a letra das leis e regras estaduais que regem as eleições. As dúvidas que forem levadas aos tribunais têm poucas chances de ser resolvidas contra os interesses dos republicanos na Suprema Corte, que Trump dotou de sólida maioria conservadora de pelo menos cinco a nove, nomeando três juízes alinhados com sua agenda nos quatro anos em que ocupou a Casa Branca.

O ingrediente central do plano é a supressão dos votos das minorias raciais, projetadas para ser a maioria da população em 2045. Construída em resposta à eleição em 2008 de Barack Obama, o primeiro negro a chegar à Casa Branca, essa estratégia se enraizou entre os eleitores brancos e os conservadores em geral depois que Trump, eleito presidente em 2016, deu-lhe credibilidade afirmando que sua vitória no colégio eleitoral contra Hillary Clinton teria acontecido também na votação popular, que ele perdeu feio, se, como disse, “milhões de imigrantes ilegais não tivessem votado”. A mentira foi investigada durante meses por uma comissão formada por Trump, e não revelou irregularidades. Dezenas de estudos confirmaram o que já se sabia, ou seja, as fraudes eleitorais são episódios raros e isolados e não alteram o resultado das eleições nos EUA. Mas isso não impediu Trump e seus seguidores de persistirem na “grande mentira”, segundo a qual a vitória de Joe Biden não aconteceu e ele é um presidente ilegítimo. 

Essa falsidade virou combustível político para os conservadores e deve ganhar espaço na campanha às eleições legislativas de novembro próximo. Os próprios democratas já admitem que seus adversários têm boas chances de ganhar o controle do Congresso e, assim reforçados, tentar uma volta à Casa Branca em 2024, com Trump. 

Muita água rolará até lá. Promotores do Ministério da Justiça trabalham sem descanso em processos criminais contra mais de 600 pessoas acusadas de ações criminosas no ataque de 6 de janeiro ao Capitólio. O próprio Trump é alvo de inquéritos e pode ser formalmente acusado. Uma decisão da Suprema Corte limitando drasticamente ou proibindo o aborto, que tem apoio de 60% da população, é esperada em meados do ano e não ajudará os republicanos. E Biden anunciará até o fim deste mês a nomeação da primeira juíza negra para o Supremo americano, decisão que deve fortalecer eleitoralmente os democratas e frustrar os planos de Trump. Mas o ex-presidente já demonstrou que não reconhece os limites da legalidade e não desistirá facilmente de sua volta ao poder.

JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE DO WILSON CENTER EM WASHINGTON