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Opinião|Democracia virtual

Há que institucionalizar o papel da internet na concretização dos ideais democráticos

Atualização:

Animei-me quando o ministro Ricardo Lewandowski assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF). Conhecendo-o há décadas, sei de sua abertura para uma nova concepção de Judiciário. Tinha a esperança de que pudesse implementar algumas reformas no combalido território da Justiça. Uma delas, premente e que não se justifica ser relegada, é a remessa do projeto de Estatuto da Magistratura, obrigação do STF há 30 anos ainda não cumprida. Outra, que cheguei a comentar com ele, foi a implementação da democracia virtual. É sobre esta que talvez caiba uma reflexão.

Quatro décadas na magistratura e quatro anos no Ministério Público me mostraram o sacrifício da logística e o elevado dispêndio de uma eleição. Algo que não resiste a uma singela análise de custo-benefício. Edifícios públicos e privados são requisitados. A cidadania, recrutada a trabalhar gratuitamente. Gastos com alimentação, preparo de espaços físicos, mobilização de enormes equipes para levar as urnas eletrônicas. Mobilização de funcionários da Justiça, de policiais, um aparato que, além do mais, deixa imunda a cidade. Sem falar nas longas filas de insustentável justificação, quando as pessoas hoje são localizadas e podem se manifestar em qualquer parte do globo. Que o digam os juízes, que já despacham por via eletrônica mesmo quando estão fora do Brasil.

Tudo bem, democracia tem seu custo. Mas não pode ser algo mais simples e menos dispendioso? Hoje o Brasil tem 265 milhões de mobiles para 209 milhões de habitantes. Isso significa que muitos brasileiros têm mais de um celular ou smartphone, ou tablet, ou notebook, ou computador pessoal. Todos antenados, todos conectados.

As últimas eleições já não mostraram a força das redes sociais? Por que não tentar algo mais arrojado? O essencial não é colher a manifestação da cidadania? A tecnologia não está a cada momento mais veloz, eficiente e confiável?

O uso das redes equivale ao retorno – ou até à implementação única, pois dizem que ela nunca existiu – do ideal da democracia direta. A ideia não vingou. Frustrada a primeira tentativa, reiterei a proposta ao ministro Dias Toffoli, que, aparentemente, não a repudiou de imediato. O certo é que o Brasil tem urgências e prioridades. É prioritário, por exemplo, remunerar melhor os professores, formá-los de outra maneira, pois serão os responsáveis pela geração do desemprego. Quantas profissões desaparecerão nas próximas décadas?

A docência passou a ser a mais relevante dentre as tarefas de um ser humano. A escola precisa ser reinventada. A democracia, também. O dinheiro que o Estado aplica em eleições – e aqui se inclua o famigerado Fundo Partidário, que fez da política partidária a profissão de alguns ociosos – pode ser direcionado ao aprimoramento das estratégias de redução dos riscos cibernéticos. Sem prejuízo de sobrar dinheiro para cuidar com mais carinho da educação.

É óbvio que nunca se eliminará a fake news, que hoje se tornou expressão tão contaminada que os intelectuais americanos preferem falar em “desinformação”. É algo ínsito à fragilidade da matéria-prima de que é feito o homem, ou seja, de boas inspirações e maus instintos.

Ninguém se livrará dos trolls, pois eles só têm nome contemporâneo. Mas existem desde as cavernas. São aqueles especialistas em criar cizânia e estimular controvérsias. Se possível, nas quais eles não estejam envolvidos, mas sejam sarcásticos meros observadores.

O fato incontroverso é que hoje a população que atua, faz valer a sua vontade, é vinculada e até dependente das redes sociais. As últimas eleições presidenciais devem propiciar uma adequada reflexão e impor uma revisita à democracia brasileira. Quem não percebeu que vender a alma para conseguir apoio de nanicos foi irrelevante e que as mensagens direcionadas a quem estava insatisfeito com a mesmice e com as práticas superadas de uma política desprovida de conteúdo já não teria vez?

Se a linguagem franca e direta, no nível que foi apreendido pelo destinatário como veraz, foi suficiente para derrubar os prognósticos dos especialistas, é mais do que chegada a hora de institucionalizar o papel da internet na concretização dos ideais democráticos.

Conheço bem os contra argumentos. Não se brinca com coisa séria; as eleições constituem um espetáculo democrático, do qual a República não se pode furtar, custe o que custar; os hackers vão fazer a festa e manipular os resultados – essas teorias conspiratórias estão sempre alerta e surgem a cada eleição, seja ela eletrônica, manual, por controle biométrico ou pelo uso da velha cédula de papel.

No momento em que a sociedade acordar para a realidade de que o governante é mero mandatário, não titular de soberania – este é o povo e só o povo –, talvez ela decida fazer desta República algo republicano. Com a democracia participativa, que dá trabalho, pois implica assunção de responsabilidades. Algo que a educação, pública ou particular, em todos os níveis, não consegue transmitir, afeiçoada à anacrônica ideia de que alguém consegue transmitir conhecimento a um educando jejuno, inerte, ávido por ouvir o magister dixit. Com as aulas prelecionais que esvaziam a sala de aula e lotam os barzinhos das imediações.

Se as redes já propiciam contato direto e permanente entre pessoas, se disseminam verdades e inverdades, mas fazem parte da rotina e do cotidiano do brasileiro, por que, então, não utilizá-las para algo realmente útil e que pode conferir grau qualitativo singular à escolha dos representantes?

Colher a manifestação da população interessada em efetivo protagonismo, valendo-se daquilo que ela aprendeu a usar – tanto que está a antecipar o desaparecimento da moeda, já sepultou o cheque, reduziu o uso do papel e a locomoção – é algo que pode conferir outro patamar à fisionomia e, principalmente, às entranhas desta complexidade instigante chamada Brasil.

*PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, GESTÃO 2019-2020, FOI SECRETÁRIO DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO (2016-2018)

Opinião por JOSÉ RENATO NALINI