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Opinião|Despejos e reintegrações na pandemia

Julgadores devem identificar ações individuais e coletivas, evitando aplicar de forma indiscriminada decisões proferidas no âmbito da ADPF 828.

Atualização:

A pandemia da covid-19, que começou em meados de março de 2020, resultou numa série de restrições envolvendo um número elevado de pessoas, justamente pelo fato de que grandes aglomerações podem influenciar numa maior difusão do coronavírus, bem como de suas diversas variantes, cujos efeitos ainda são objeto de inúmeros estudos da comunidade científica e médica em geral.

O Poder Judiciário sentiu e sente os efeitos desta crise sanitária global, tendo sido adotadas várias medidas visando a eliminar, ou ao menos a minimizar, os impactos trazidos pela pandemia – ainda que tais medidas possam decorrer de ações propostas por pessoas com os mais diversos interesses políticos e sociais.

Assim, no ano de 2021 foi proposta uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) visando a obstar, ainda que temporariamente, os despejos e reintegrações realizados no País, já que tais procedimentos podem resultar em inúmeros conflitos envolvendo um número considerável de pessoas que ocupam um determinado terreno, cenário propício para a ampla transmissão do novo coronavírus.

Esta ação, na forma da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 828, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, tornou-se o instrumento adotado para legitimar a suspensão das ordens de retomada de bens imóveis ilegalmente ocupados por famílias. Esse processo está registrado sob o n.º 0052042-05.2021.1.00.0000.

Cabe enfatizar, aqui, que a política de acesso a moradia tornou-se uma das obrigações mais importantes que o poder público deve cumprir, sendo certo que os resultados trazidos pelas ações adotadas estão abaixo das expectativas de boa parte da sociedade. Porém essa situação não pode ser utilizada como justificativa para fins de ocupação indiscriminada de imóveis de maneira irregular, já que essa conduta, além de não resolver definitivamente o drama da moradia, contribui para agravar um cenário de apreensão e violência na sociedade brasileira.

Quando a ação foi proposta, a pandemia no Brasil encontrava-se num dos seus momentos mais dramáticos, com o número diário de contaminados e mortos sendo registrado nos órgãos públicos, resultando em inúmeras medidas de restrição social adotadas pelas diversas entidades da Federação (por exemplo, a antecipação de feriados municipais, a suspensão do funcionamento de locais que formavam aglomerações, tais como shoppings, danceterias, etc.).

Além disso, em outubro de 2021 foi aprovado o projeto que resultou na Lei Federal n.º 14.216/2021, cujo teor estabelecia a suspensão de ordens de remoção e despejo em imóveis urbanos até o dia 31 de dezembro daquele ano.

Desde então, uma série de decisões adotadas pelo relator na ação supracitada acabou prorrogando as suspensões de despejo, englobando não apenas os imóveis urbanos, mas também aqueles localizados no meio rural, sem que tais decisões efetivamente estejam em consonância com o cenário de combate à pandemia ou estejam balizadas em critérios epidemiológicos.

No entanto, um dos efeitos trazidos por este processo e os atos desde então praticados pelo relator são uma série de decisões judiciais adotadas em processos individuais que, baseando-se na ADPF em discussão, estabelecem a suspensão das ordens de despejo e reintegrações de natureza individual.

Ora, essas decisões fogem ao que consta no próprio teor da ação que tramita no STF, já que a proteção contra despejos concedida neste processo engloba apenas as reintegrações de natureza coletiva, assim entendidas como aquelas que envolvem um número indeterminado de ocupantes.

É o que ocorre, por exemplo, nos casos envolvendo inúmeras famílias que invadem um terreno na beira de uma avenida ou estrada, para fins de instalação de barracos que não têm o mínimo de segurança quanto à sua estrutura.

Não é o caso das reintegrações e dos despejos atrelados a ações em que os réus se encontram devidamente identificados previamente, como é o caso de uma ação de despejo contra um locatário que não cumpriu com as obrigações decorrentes de um contrato anteriormente celebrado.

Evidentemente que já existem julgados que buscam corrigir essa interpretação, procurando harmonizar o andamento dos processos individuais com a própria ação que tramita no STF. É o que pode ser destacado no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 2272327-90.2021.8.26.0000, em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Desta forma, é fundamental que os diversos julgadores busquem identificar quais são as ações que envolvem despejos ou reintegrações individuais ou coletivas, evitando aplicar de forma indiscriminada as decisões que são proferidas no âmbito da ADPF que tramita na Suprema Corte.

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ADVOGADO, CONSULTOR JURÍDICO, É ESPECIALISTA EM DIREITO EMPRESARIAL PELA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE 

Opinião por Daniel Alexandre Sarti