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Jornalista, escritor (Prêmio Jabuti 2000 e 2005; Prêmio APCA 2004) e professor aposentado da Universidade de Brasília, Flávio Tavares escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Em pleno dia dos tolos

No Brasil, nos últimos anos, desapareceu o trote lúdico destinado a divertir e instalou-se o engano como arte de governança.

Atualização:

A data de hoje, 1.º de abril, é o “dia dos tolos”, ou dos bobos, apontado assim em quase todo o mundo. Agora, quando a tecnologia transformou tudo em imagem, pode ter perdido a relevância, mas a tradição persiste. E, ao persistir, a data continua a ser o que sempre foi.

É o dia do engano lúdico ou até inocente, diferente daquele outro em que se engana para usufruir de vantagens e lucros ou, até, para destruir o próximo.

Até bem poucos anos, todos se deliciavam “pregando um trote” no dia 1.º de abril. As crianças inventavam inocentes brincadeiras e os adultos transmitiam absurdos, uns aos outros, como verdades absolutas. Na Europa Ocidental, a imprensa apresentava sempre um disparate aos leitores naquele dia. Nos anos em que morei em Lisboa, um respeitável jornal local publicou (com manchete na primeira página) a história de um disco voador que havia pousado no Rio Tejo. Histórias semelhantes apareciam na imprensa francesa e na alemã, mas infalivelmente destinadas a alegrar.

No Brasil, porém, nos últimos anos desapareceu o trote lúdico destinado a divertir e que tinha, também, o lado didático ao localizar o absurdo. Em vez disso, instalou-se o engano como arte de governança. Refiro-me ao perene 1.º de abril dos politiqueiros, hoje empoleirados no governo e nos partidos.

Neles, a atividade de governar passou a ser o engano premeditado, profundo ou superficial, mas sempre relevante, feito para obter vantagens pessoais ou votos. Vivemos agora, no Brasil, sob um 1.º de abril contínuo e que, assim, torna-se permanente. Tantos são os absurdos que parecem trotes inventados.

O disparate mais recente culminou com o pedido de exoneração do ministro da Educação, Milton Ribeiro. Não repetirei o que todos conhecem, mas lembro que, nos muitos (des)governos que teve o Brasil, jamais se havia pedido ouro como propina para intermediar verbas governamentais. Tampouco se deu “desconto” de 50% no antecipado “sinal” da propina em dinheiro vivo a alguém, por ser “amigo do ministro”, como ocorreu agora.

O brutal e insólito, porém, é que a iniciativa tenha partido de dois pastores de igrejas pentecostais, elevados à condição de intermediários em condições de abrir porta$ no atual governo. Essas igrejas sem teologia e que inventaram a tal de “teologia da prosperidade” são comuns no Brasil há muitos anos. Só agora, porém, com Bolsonaro no poder, tornaram-se intermediárias junto do governo.

Mais insólito ainda é que o próprio presidente Bolsonaro tenha defendido ardorosamente o então ministro, ao afirmar que por ele já não punha as mãos no fogo, mas “a própria cara”, como disse e ouvimos pela televisão.

Não será isso a demonstração de que um permanente 1.º de abril instalou-se no País? Transformar tudo em absurdo, ou dar hierarquia ao horror, vem sendo um processo contínuo entre nós no Brasil. Acentuou-se e cresceu com Bolsonaro, mas vem ainda dos tempos do reinado de Lula da Silva. Ou já nos esquecemos de que Lula se jactava de que “nunca os bancos tinham lucrado tanto” como em seu governo, como se isso resolvesse os problemas do País?

Ou nos esquecemos, também, de que o “mensalão” foi um corrupto artifício para formar a tal “base aliada” que – subornando deputados e senadores – sustentou os governos Lula e Dilma no Parlamento?

Mais ainda: esquecemo-nos do escândalo do “petrolão”, que destruiu a Petrobras, que até então fora um dos símbolos do próprio País?

Não foi isso, também, um logro de 1.º de abril, que, ao repetir-se, passou a ser assimilado por boa parte da população como se fosse a normalidade do dia a dia?

Agora, em época pré-eleitoral, surge outro logro ou engano, que os meios de comunicação alimentam e espalham pelo País. Refiro-me às chamadas “pesquisas” que pretendem antecipar os futuros resultados eleitorais. Feitas por telefone em rápidas consultas a 2 mil pessoas, são apresentadas como representativas da vontade de milhões de eleitores.

De fato, são um embuste que nada revela, mas que induz o eleitor a votar por X ou Y, sem explicar quem eles sejam ou o que propõem. Não se apresenta o que fizeram os candidatos nem seus planos de governo. Tudo se resume a números abstratos que levam o eleitor comum, que é maioria no Brasil, a optar pelos primeiros colocados numa esdrúxula lista. É comum ouvir, no Brasil, que nos digam “botei meu voto fora” quando alguém não sufragou o eleito.

A repetição ad infinitum de algo inexistente leva a crer que exista e seja real. É a velha e carcomida visão de Joseph Goebbels: “A mentira repetida mil vezes torna-se verdade inquestionável”. Habituamo-nos a ela, perdemos o senso crítico e terminamos imbuídos de que a mentira é verdade. Assim, a cada instante, vivemos um 1.º de abril e somos capazes até de guardar uma garrafa térmica na geladeira para conservar o calor.

Mais do que tudo, não nos esqueçamos de que o golpe militar de 1964, que implantou a ditadura, triunfou num 1.º de abril.

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JORNALISTA, ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UnB

Opinião por Flávio Tavares
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