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Opinião|Empoderamento feminino e santidade

Beatificada uma mulher à frente do seu tempo, que soube viver a aventura do ordinário

Foto do author Carlos Alberto Di Franco
Atualização:

Aqueles que acompanham meus artigos sabem que com grande frequência utilizo este espaço para refletir sobre o trabalho da imprensa. Costumo apontar condutas que, a meu ver, põem em xeque o brilho da profissão e contribuem para rebaixar a credibilidade da mídia. Não poucas vezes procurei refletir sobre os desvios de alguns profissionais que, contaminados pelo vírus da preguiça digital, trocam a rua e suas histórias incríveis pelas entrevistas telefônicas express ou por aqueles depoimentos obtidos pelas redes sociais. O jornalismo é movido pelo extraordinário, pelo curioso, pelo episódio inusitado que não raro grita ao nosso lado. Mas para ouvi-lo é preciso descer à arena, ir ao combate à procura dos fatos que merecem ser contados.

A vida, felizmente, é mais rica e muitas vezes, aí, o espetacular não é definido unicamente pelos critérios de noticiabilidade. Ao nosso lado todos os dias transita incalculável número de heróis anônimos que, sem receberem uma fagulha da pirotecnia midiática, luzem por si sós. Suas histórias permanecem ocultas, desconhecidas do grande público. Mas ao seu redor a vida prospera. Sem que percebam, cumprindo com fidelidade seus compromissos cotidianos, tocam e deixam por herança algo realmente esplêndido.

Esplêndida assim foi a vida de Guadalupe Ortiz de Landázuri, uma mulher que, movida pela consciência sobre o papel feminino na sociedade, se colocou à frente de seu tempo. Fiel do Opus Dei falecida em 1975, ela é a primeira entre os membros leigos da prelazia a subir aos altares. A cerimônia de beatificação foi realizada dia 18 em Madri, sua cidade natal.

A história de Guadalupe parece-me ganhar maior relevância num momento em que a bandeira do empoderamento feminino tremula alto e ali, com razão, deve permanecer. Seu vigor vanguardista a fez buscar novos desafios em ambientes geralmente pouco favoráveis. Na década de 1930, quando as vozes feministas ainda não ressoavam nas ruas da tradicionalíssima Europa, ela ingressou na universidade. Um projeto em si ousado, dado que na época as mulheres representavam apenas 14% do total de alunos matriculados em cursos superiores na Espanha. Mas o arrojo de Guadalupe foi além. Escolheu a graduação em Ciências Químicas, quando mais da metade das estudantes optavam pelo curso de Filosofia e Letras. Estava numa turma predominantemente masculina, na qual, dos 70 inscritos, apenas 5 eram mulheres.

Para as moças que terminavam os estudos superiores, as estatísticas escancaravam uma estrutura social ainda mais impiedosa: em 1940 apenas 8% delas permaneciam no mercado de trabalho. Guadalupe abriu esse caminho por picadas. E deixou a clareira para que outras pudessem transitar por ali. Finalizou o doutorado em 1965, foi docente, pesquisadora e catedrática.

Sua convicção acerca do papel da mulher encontrou plena sintonia nos projetos de São Josemaría Escrivá. Em 1944, quando um grupo de amigos lhe apresentou o fundador do Opus Dei, Guadalupe sentiu-se atraída pelo ideal da busca da santidade no exercício do trabalho profissional. Abriu-se então um surpreendente panorama. Entendeu que ela mesma deveria ser vetor para uma profunda transformação social. Desenvolveu intenso trabalho com as comunidades mais carentes de diversas cidades da Espanha e do México, país onde viveu por dez anos.

Nessa época, quando a perspectiva da emancipação feminina causava estranheza e desconfiança em alguns, São Josemaría já sonhava e fazia sonhar com o dia em que as mulheres da prelazia estariam à frente de escolas agrícolas onde se ensinariam ofícios às trabalhadoras do campo, de clínicas médicas, de editoras de livros, de instituições universitárias. Insistia também que a seção feminina do Opus Dei deveria ter autonomia para dirigir suas próprias iniciativas apostólicas.

Em entrevista publicada em 1968 pela revista espanhola Telva, o fundador do Opus Dei esclareceu aspectos importantes desse empoderamento que Guadalupe soube compreender, viver e difundir. “Para cumprir essa missão a mulher tem de desenvolver sua própria personalidade, sem se deixar levar por um ingênuo espírito de imitação que – em geral – a situaria facilmente num plano de inferioridade”.

A beatificação nos ensina sobre a eficácia de uma mulher revolucionária, mas ao mesmo tempo muito comum. Guadalupe soube viver a aventura do ordinário. Em emblemática homilia, São Josemaría Escrivá resumia essa realidade, um dos pilares do espírito próprio do Opus Dei. “Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir”. Guadalupe descobriu.

Não há como negar que vivemos num mundo doente. Construímos – você e eu – uma sociedade movida pela aparência, pelo postiço. O êxito pessoal passou a ser aferido pelo número de curtidas de uma postagem em rede social. Enaltecemos as grandes performances, condecoramos aqueles que atingem altos patamares de prestígio. Precisamos ser os melhores em tudo, ou pelo menos aparentar ser os melhores, simular uma vida perfeita ao lado de pessoas perfeitas. E nunca estivemos rodeados de tanta depressão e angústia, de tanta amargura e desgosto. Gente de todas as idades atingida pela praga moderna de uma vida sem sentido.

Arrisco-me a dizer que o remédio para a imensa maioria dos casos é aterrissar na vida real. É saudável entender que nossas jornadas não estão, e nunca estarão, recheadas de momentos e feitos espetaculares. O amor ao ordinário nos abrirá o caminho para o extraordinário. Como fez Guadalupe Ortiz de Landázuri.

JORNALISTA

Opinião por Carlos Alberto Di Franco

Jornalista