EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Jornalista, É Pesquisador Sênior Do Brazil Institute Do Wilson Center, em Washington

Opinião|EUA andarão para trás ao banir ou limitar aborto

No Brasil, onde o tema não é prioritário para as mulheres eleitas pelo povo, é difícil de vislumbrar algum progresso.

Atualização:

Quem diria, os Estados Unidos podem ficar parecidos com o Brasil e outras sociedades conservadoras e atrasadas na questão do aborto. Segundo minuta de decisão da Suprema Corte sobre caso em litígio no Estado de Mississippi, obtida pelo jornal online Politico e publicada no início da semana, em vazamento sem precedentes, o direito ao aborto, que é preceito constitucional há 49 anos, será restringido ou anulado, deixando para os Legislativos dos 50 Estados a decisão sobre a interrupção artificial da gestação.

O projeto de lei adotado no Mississippi proíbe o aborto depois de 15 semanas. O autor da controvertida decisão, o juiz Samuel Alito, foi elevado ao Supremo pelo presidente republicano George W. Bush. Uma decisão ainda mais drástica, aprovada pelo tribunal supremo do Texas, limita o aborto à sexta semana, quando muitas mulheres nem sequer sabem que estão grávidas.

O objetivo dos proponentes de ambas as iniciativas é restringir fortemente ou invalidar decisão tomada há meio século por sete juízes da Suprema Corte (cinco dos quais nomeados por presidentes republicanos) que legalizou o aborto com base no direito à privacidade – um direito que, a exemplo de outros, não consta no texto original da Constituição. Nos Estados Unidos e em outras democracias, o direito à privacidade foi construído ao longo do tempo por jurisprudências adotadas para proteger o indivíduo contra a intromissão indevida do Estado em sua vida privada. O privilégio dá às mulheres a opção de escolher se querem ou não levar a gravidez a termo.

A complexidade do debate público começa com os termos usados para descrever os dois campos em contenda. De um lado estão os que se autointitulam “pro-choice”, ou seja, “pela escolha”, e defendem a soberania da mulher sobre seu corpo; do outro, alinham-se os que se autodefinem “pro-life”, ou “pela vida”. Estes buscam o banimento do aborto e julgam ter o monopólio das razões éticas, morais ou religiosas que invocam para justificar sua posição. As pesquisas de opinião, estáveis há anos, mostram apoio de 62% dos cidadãos e de proporções maiores de mulheres ao aborto legal. Mas os números variam quando as restrições propostas são nuançadas.

O presidente Joe Biden, o segundo católico a governar o país, vai à missa as domingos, mas é pro-choice. Donald Trump, um narcisista pragmático acusado de atos de violência sexual por várias mulheres e que nunca orientou suas ações por razões de ordem moral, reforçou o lado antiaborto nos seus quatro anos na Casa Branca nomeando três juristas conservadores para a Suprema Corte. A nova maioria do tribunal tornou inevitável a limitação ou proibição do aborto. A forma final da decisão terá fortes consequências políticas, a começar para o prestígio do próprio Supremo, que está em declínio.

Ela pode tanto motivar o eleitorado republicano e trumpista como gerar reação oposta e mobilizar o eleitorado jovem e feminino e poupar os democratas de uma provável derrota nas eleições legislativas de novembro próximo.

No Brasil, o debate sobre o assunto é ocioso. Proibido desde sempre no (supostamente) maior país católico do mundo, o aborto é permitido apenas quando a gravidez envolve risco de vida para a gestante, resulta de estupro ou envolve feto anencéfalo. Na realidade, porém, o aborto é vedado apenas às mulheres de baixa renda, que não têm acesso a clínicas privadas e às informações e respaldo social necessários para justificar a interrupção da gravidez pelas razões permitidas. Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2018 morria mais de uma mulher por dia no País em consequência de abortos feitos sem as devidas condições de segurança sanitária. Considerada a subnotificação, o número real é estimado em dezenas, talvez centenas de milhares.

A exemplo dos Estados Unidos, o assunto é fonte de hipocrisia. Nas eleições de 2010, os candidatos presidenciais Dilma Rousseff e José Serra esforçaram-se para não explicitar suas posições reais sobre o tema, que eram idênticas: ambos viam o aborto como uma questão de saúde pública. Como era politicamente desaconselhável deixar isso claro, Dilma fez peregrinação à Basílica de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, e a esposa do candidato tucano, Monica Serra, também foi ao Santuário, de onde saiu abraçada a um imagem da santa, com a missão de levá-la de presente ao povo do Chile, seu país de origem.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, favorito nas pesquisas para voltar ao Planalto, não parece saber o que fazer ou dizer sobre o aborto. Recentemente, ele se declarou publicamente a favor da legalização da prática. Mas, no mesmo dia – na certa alertado por assessores de que sua posição ajudaria Bolsonaro e sua base evangélica –, fez meia volta e esclareceu que “pessoalmente”, é “contra o aborto”.

Num país onde a representação feminina em cargos eletivos segue irrisória, onde as candidatas evitam falar em direitos reprodutivos e mesmo mulheres da elite são vítimas de violência obstétrica, é difícil de vislumbrar progresso neste tema.

*

JORNALISTA, É PESQUISADOR SENIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON 

Opinião por Paulo Sotero
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.