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Opinião|Jô Soares, o imortal

Para minha decepção, ele se foi. Ficou o vazio, mas ficaram as suas lições de humanismo, de amor ao próximo e de brasilidade.

Atualização:

Há figuras humanas que se imagina serem imortais. Não é a imortalidade dos que permanecem na memória e na saudade daqueles que ficam. Eu me refiro à imortalidade no sentido literal. O ser que jamais se ausentará. Jamais morrerá. Jamais será enterrado. O seu corpo permanecerá e sempre será visto.

Assim eu imaginava que ocorreria com Jô Soares. Ele nunca nos deixaria. Como diziam os antigos, ele ficaria para semente. Na verdade, efetivamente ele partiu, mas com certeza as suas sementes germinarão e darão frutos.

Quais sementes? Várias, e que correspondem com as suas qualidades e características. Inteligência, cultura, rapidez de raciocínio, alegria, humor, fidelidade às suas origens, por vezes sagacidade e ironia. Essas e tantas outras.

No entanto, eu quero testemunhar um relevante aspecto que foi para mim revelado nos últimos tempos. Especificamente nos quatro anos anteriores a hoje. A sua brasilidade. A sua preocupação com o País. A sua apreensão de estar assistindo a um Brasil atormentado pela intolerância, pelos riscos de ruptura institucional, pelas pregações destrutivas, pelo estímulo às armas, pelo esmaecimento de sua imagem perante o mundo, pela destruição das matas, etc., etc. Afligia-o, também, a crescente desarmonia instalada no seio da sociedade, por um discurso voltado para a destruição e o ódio.

Ele padecia especialmente por querer fazer algo, e não saber o quê. Não tinha mais programa de televisão ou de rádio. Confesso que não sei se tinha ou não alguma rede. De qualquer forma, ele achava que nada estava fazendo. Não era verdade. Escreveu para os jornais cartas ao presidente da República, nas quais comunicou o seu inconformismo e sua incompreensão com o estado de coisas. E o fez da forma habitual: com refinado humor, ironia, sarcasmo inteligência e escrita apurada. Resta saber se o destinatário leu e entendeu.

Talvez poucos homens de comunicação tivessem conhecido o Brasil e os brasileiros como ele, mercê de sua profícua atividade de entrevistador e humorista que retratou tipos brasileiros com fidelidade e graça durante mais de 50 anos. Conheceu o homem brasileiro de todas as classes sociais, categorias culturais, atividades profissionais. Explorou com argúcia e profundidade todos os escaninhos e labirintos do pensamento, da vida, dos fatos ligados a cada entrevistado. Fez o mesmo com seus personagens, usados para poder esmiuçar a sociedade, dissecar os seus meandros, levantar o tapete de suas escondidas mazelas. E tudo fazia com absoluta liberdade e independência jornalísticas.

Jô tornou-se um retratista fidedigno do Brasil e do seu povo, eu diria ter sido ele um historiador do nosso presente.

Cada tipo de seus programas simbolizava um brasileiro típico. Por outro lado, também por meio deles, fazia saborosas críticas sociais que, com certeza, colaboraram para a derrota de preconceitos e para o avanço civilizatório de uma sociedade arraigada em hábitos e costumes conservadores. Antevia uma evolução social que acabou por se concretizar. O torcedor de futebol Zé da Galera e o Capitão Gay foram duas dessas figuras emblemáticas.

Tinha a grande qualidade de fazer rir, é verdade. Mas também sabia rir de si. A maior prova era como trabalhava com sabedoria a sua obesidade. A importância que ele se dava era menor do que lhe era emprestada por todos. Tinha de si a mesma visão que possuía da própria condição humana, marcada por grandezas e fraquezas. Assim é o homem, segundo pensava, com acerto.

Semanalmente, conversávamos. Possuidor de uma memória extraordinária, deliciava-me com histórias de fatos e de gentes. Remontava à época em que começara na televisão, com Silveira Sampaio, considerado por ele como mestre dos programas de entrevistas televisivas. Outra figura por ele enaltecida na área dos programas humorísticos foi Max Nunes. Citava, também, um antigo colaborador da TV Tupi, canal 3, Túlio de Lemos. Deixava, ainda, patente a sua gratidão ao jornalista Matinas Suzuki, responsável pelas suas memórias.

Era muito discreto quanto à sua vida pessoal. Não falava de seus amores. E foram muitos. Mas não escondia o seu afeto e a sua gratidão pela Flavinha, Flávia Pedras, que o amparou até os últimos dias. Mesmo após o término do romance, a amizade de ambos não os deixou separados.

Como disse, a situação do País o preocupava sobremodo. Indagava-me sobre medidas judiciais que poderiam ser adotadas para barrar a escalada autoritária e antidemocrática que está em marcha. Queria saber dos movimentos de resistência da sociedade. Ações coletivas e isoladas.

Por essa razão, a melhor homenagem, o tributo mais significativo que podemos prestar a este brasileiro de raiz é não permitir nenhuma interrupção, nenhuma pausa na escalada de resistência coletiva, até que tenham sido dissipados do horizonte pátrio os riscos de ruptura institucional e de desarmonia social, em seu nome e em nome do País, que ele muito amou.

Para minha decepção – pois o julgava “imorrível” –, Jô se foi. Ficou o vazio, mas ficaram também as suas lições de humanismo, de amor ao próximo e de brasilidade.

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ADVOGADO

Opinião por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira