Foto do(a) page

Conheça o Espaço Aberto na editoria de Opinião do Estadão. Veja análises e artigos de opinião em colunas escritas por convidados e publicadas pelo Estadão.

Opinião|Liberalismo e condescendência

São faces distintas da mesma moeda a liberdade e a responsabilização dos indivíduos por seus atos.

Atualização:

Agrada-me discutir ideias que se contrapõem. Ajuda a prevenir sofismas e paralogismos. Proponho-me, aqui, a refletir sobre os conceitos de liberalismo e condescendência.

Tomo por liberalismo a proteção à liberdade individual em sentido amplo – abrangendo aspectos econômicos, políticos, religiosos e intelectuais –, bem como a limitação da capacidade de coerção de alguns indivíduos sobre outros e, em particular, a restrição do poder estatal sobre os indivíduos. Trata-se de princípios civilizadores amplamente aceitos no mundo ocidental. Por outro lado, entre os diversos usos da palavra condescendência, apego-me à definição de conduta que ignora as exigências do dever por complacência, fraqueza, lisonja ou temor.

Tais conceitos se contrapõem quando o sistema público, a pretexto de não abusar de seu poder, torna-se excessivamente flexível quanto à aplicação das regras preestabelecidas. Ocorre que a promoção de bem-estar social requer restrições a comportamentos considerados nocivos à coletividade. Ao limitar exageradamente o poder repressivo do Estado, não se consegue garantir sequer as liberdades individuais mais elementares. Na verdade, ensina-nos Friedrich Hayek, em seu livro The Constitution of Liberty, que a responsabilização dos indivíduos por seus atos é o pressuposto para permiti-los a agir livremente. Numa tradução solta de suas palavras: “Liberdade significa não apenas que o indivíduo tenha a oportunidade e o fardo da escolha; significa, também, que ele deva arcar com as consequências de suas ações e por elas receba louvor ou culpa. Liberdade e responsabilização individual são inseparáveis”.

Reprimir comportamentos socialmente indesejáveis é um serviço desafiador. As condutas ilegais não costumam ser facilmente identificáveis. Com frequência, obtêm-se indícios e evidências cuja força probatória depende de convencimento subjetivo de julgadores. Há, portanto, riscos de “condenar um inocente” ou “absolver um culpado”, dois tipos de erros antagônicos que acompanham a atividade repressiva.

Ademais, os comportamentos considerados socialmente indesejados mudam com o tempo, criando a necessidade de um sistema capaz de se adaptar e autocorrigir. Algumas ações são condenadas desde a Antiguidade – por exemplo, roubar, matar, fraudar. Outras, por sua vez, tiveram seu potencial lesivo modificado em face de avanços sociais e tecnológicos. Restrições a práticas contra os costumes, por exemplo, são frequentemente substituídas. A crescente preocupação com o meio ambiente demandou a intensificação de ações repressivas, assim como atualizações de normas legais e infralegais. A tolerância com preconceitos, bullying, assédio moral, mentiras e notícias falsas sofre evolução contínua, seja por mudanças na consciência coletiva, seja porque seus riscos ao bem-estar social se alteram a cada inovação nos aplicativos de comunicação.

Tais desafios, entretanto, não servem de justificativa para condescender com a aplicação das normas. Ao contrário, deve-se buscar a inovação e o aperfeiçoamento dos instrumentos de controle de atos ilícitos. O Estado deve ser dotado de capital humano qualificado e de ferramentas tecnológicas atualizadas para atuar de forma ágil e transparente. O controle democrático das ações estatais é, também, necessário ao projeto liberal. Nesse sentido, assume especial importância a integração virtuosa entre o corpo burocrático profissional e membros da sociedade civil na condução e no controle de ações estatais. Esse foi o espírito que norteou o desenho de diversas instituições, tais como a autoridade antitruste, o banco central e as agências reguladoras.

Por fim, cabe lembrar que a tarefa de responsabilizar indivíduos por seus atos não está restrita a servidores agindo em nome do Estado. Outras pessoas em posição de autoridade – por exemplo, chefes corporativos, professores, pais e demais cuidadores de menores – se deparam com dilemas semelhantes. A condescendência é um atributo indesejável àqueles que cuidam desses deveres. Por um lado, precisa-se de rigor para desenhar e executar um sistema de contingências, baseado em premiações e sanções, capaz de promover o pleno desenvolvimento de funcionários, alunos e crianças. Por outro, deve-se ter humildade para reconhecer os potenciais erros de juízos interpretativos e sabedoria para compreender adequadamente o ambiente social.

Levo, assim, três mensagens desta breve reflexão. Liberdade e responsabilização dos indivíduos por seus atos são faces distintas de uma mesma moeda. Mudanças na interpretação das leis à luz de alterações nas práticas sociais e inovações tecnológicas são naturais e necessárias. A condescendência na aplicação das normas, à luz de sua interpretação mais adequada ao momento social, é antiliberal. 

Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional do Cade ou da FGV.

* PHD EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE CHICAGO, É CONSELHEIRO DO CADE E PROFESSOR DA FGV EPGE

Opinião por Luis Henrique B. Braido