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Procurador de Justiça no MPSP, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante, é idealizador e presidente do Instituto 'Não Aceito Corrupção'

Opinião|Macunaímas

Nestes cem anos, foi cada vez mais comum o uso do poder visando ao autobenefício e à aprovação de leis para acomodar interesses mesquinhos.

Atualização:

A centenária Semana de Arte Moderna foi além da renovação de linguagem e do início do Modernismo no Brasil. Muitos consideram que ali se iniciou, mesmo, a construção da identidade, da arte e da cultura popular brasileiras, a partir de figuras icônicas, como Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Victor Brecheret, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e, especialmente, Mário de Andrade.

Mário de Andrade andou pelo País fazendo incursões etnográficas nas décadas de 1920 e seguintes, lançando luz sobre a necessidade de sistematizar nossas referências culturais e historiográficas. Legitimou-se, assim, como referência maior do patrimônio histórico e cultural, pai do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que seria fundado nos anos seguintes.

A abolição da escravidão, em 1888, e a República, no ano seguinte, evidenciaram que algumas modificações vinham marchando, mas é fundamental que se registre que não foram conquistas advindas da luta do povo nas ruas, mas meros movimentos de elites. Ao ponto que, proclamada a República, não se instituíram de imediato eleições, que ocorreriam somente cinco anos mais tarde. A Constituição de 1891 não reconheceu direitos políticos a analfabetos, mulheres, pedintes, soldados e integrantes de ordens religiosas, como registra o imortal José Murilo de Carvalho em sua obra Cidadania no Brasil.

Elitista, nossa primeira eleição teve a participação de 2,2% da população ativa em 1894, caindo para 0,9% em 1910 (em Nova York, naquela época, 88% do eleitorado ativo masculino participava), e só evoluiríamos para 13,4% em 1945, no Estado Novo varguista. Vale registrar a inexistência de movimento popular algum, postulando participação popular até 1930, à exceção do pequeno e aguerrido movimento em prol do voto feminino.

Está começando um ano decisivo para nós, que traz consigo a certeza absoluta de que quase nada avançará no Brasil, pois teremos eleições em níveis federal e estadual, para escolher presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais. O País viverá 2022 em função disso, ainda que a fome, a inflação, o desemprego, o déficit na educação e na saúde não esperem, e assim, infelizmente, acumularemos mais um ano de estagnação social e econômica.

O Brasil de um século atrás, com população despolitizada e em grande número analfabeta, é retratado por Victor Nunes Leal em sua obra Coronelismo, Enxada e Voto, que enfatiza que do compromisso fundamental dos remanescentes do privatismo, alimentado pelo poder público, resultaram as características do sistema “coronelista”: o mandonismo, o filhotismo e o falseamento do voto.

Isso porque, em fevereiro de 2022, nosso balanço do século que se passou desde a corajosa, criativa e inovadora disrupção modernista não é alvissareiro no plano político, apesar de alguns avanços, como a criação do SUS, a melhoria em relação à redução das mortalidades materna e infantil e do analfabetismo, pois a cultura do compadrio, advinda do patrimonialismo coronelista apontado por Nunes Leal, está viva, sendo ainda cultuado o nepotismo como modelo de gestão pública, em pleno século 21, por diversas figuras detentoras de parcelas expressivas de poder.

Falar em contratação de parentes nos tempos de D. Pedro, vá lá. Mas a defesa da tese diante da impessoalidade e da prevalência do interesse público impostas pela Constituição é ignomínia. Mas se faz, à luz do dia e com naturalidade. Chegam alguns a ficar compreensivelmente constrangidos em defender a ética republicana meritocrática, invocando célebre pensamento de Ruy Barbosa.

A preocupação com o patrimônio histórico e cultural de Mário de Andrade, cuja defesa jurídica o Ministério Público faz por ordem constitucional – assim como do meio ambiente, do patrimônio público, dos consumidores, indígenas, da infância, de pessoas com deficiência, idosos e outros interesses tão caros à sociedade –, é esmagada e vilipendiada por cancelamentos virtuais e falsas narrativas.

Aliás, desde o ano passado, os violadores da lei sentem-se injustamente leves, pois, com a Lei 14.230/21, não são mais punidos por improbidades culposas (mesmo gravíssimas), quase nunca por improbidades sem danos e, para serem punidos por improbidades com danos, exige-se prova do dolo específico. E os novos prazos de prescrição fluem num piscar de olhos. Ou seja: o Congresso e o presidente da República praticamente garantiram a eles o direito à impunidade.

O heroísmo sem caráter macunaímico, definido por Mário de Andrade, talvez seja uma boa maneira de denominar os políticos que praticam o chamado “rouba, mas faz”, que procriam ao infinito, em diversas legendas partidárias, sem restrições, à esquerda, no centro e à direita. Hoje, inclusive, muitos roubam e nem sequer fazem.

Nestes cem anos, foi cada vez mais comum o uso do poder visando ao descarado autobenefício e à aprovação de leis para acomodar interesses mesquinhos, conforme diagnóstico preciso de Acemoglu e Robinson em sua obra Por que as Nações Fracassam. Temos um longo e difícil caminho a percorrer, mas, em outubro, os eleitores terão uma nova oportunidade de começar a escrever uma nova página na nossa história.

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PROCURADOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO, IDEALIZOU E PRESIDE O INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO

Opinião por Roberto Livianu
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