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Opinião|Não há vácuo de poder

Desde 2015, estamos diante de uma gradual reação do sistema político que também altera relação de forças entre os Poderes.

Atualização:

Os cientistas políticos pós-década de 1990 estudaram um Brasil que parece não existir mais. Crescemos com a tese de que a Constituição de 1988 trazia em seus dispositivos uma preponderância decisória do Executivo baseada no seu poder de agenda institucional. Em outras palavras, a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo favorecia propositadamente o primeiro e a Constituição garantia ao presidente da República instrumentos e capacidade de fazer valer seus interesses. Dentre os mecanismos para isso estava a possibilidade de editar medidas provisórias, de solicitar regime de urgência a qualquer momento da tramitação de um projeto de lei e de vetar projetos após apreciação do Parlamento, além da prerrogativa de iniciar e controlar o processo orçamentário.

Esses são tempos pretéritos. A realidade tem demonstrado que estamos, desde 2015, diante de uma gradual reação do sistema político que altera também a relação de forças entre os dois Poderes.

Quando a Operação Lava Jato foi deflagrada, em 2014, empresas doaram, juntas, mais de R$ 3 bilhões para campanhas eleitorais, representando 80% do total doado naquele ano. Não há dúvidas de que a operação ajudou a consolidar a percepção da opinião pública de que empresas interferiam e desequilibravam o jogo eleitoral e de que seus recursos eram, se não a origem, parte importante da explicação sobre corrupção e desvios na política. Naquele momento, o único recurso público a financiar os partidos políticos advinha do Fundo Partidário e somava R$ 25 milhões ao ano.

Em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou o fim da doação de empresas às campanhas eleitorais, após cinco anos de análise sobre o assunto. O fechamento da torneira das empresas implicou, é claro, a abertura da torneira dos recursos públicos à disposição dos partidos. Naquele ano, os recursos do Fundo Partidário foram triplicados (chegando a R$ 868 milhões) e, de lá para cá, cresceram em torno de 150%. Criou-se, ainda, um novo fundo exclusivo para financiamento de campanhas eleitorais, iniciado em 2017 com o montante de R$ 1,7 bilhão e que teve recentemente seu valor triplicado para R$ 5,7 bilhões.

Paralelamente aos recursos públicos que passaram a abundar para partidos e candidatos, o Parlamento ampliava sua atuação em relação ao Orçamento federal e ganhava mais acesso a recursos públicos. Foi também em 2015 que as emendas individuais passaram a ser impositivas, ou seja, com execução obrigatória, o que impactou o Orçamento em quase R$ 10 bilhões naquele ano. A iniciativa abriu caminho para as emendas de bancada, que seguiram o mesmo caminho em 2019, ano em que foram aprovadas, também, as chamadas transferências especiais, modalidade em que o parlamentar repassa recursos para governo ou prefeitura sem destinação específica e sem que seja necessária a apresentação de um plano de trabalho ou projeto pelo ente recebedor.

Nesse meio tempo, uma mudança também ocorria em relação aos vetos presidenciais. Como demonstra Bruno Carazza, a média mensal de vetos do período atual é duas vezes maior que a do governo Lula, e a derrubada mensal de vetos presidenciais no Congresso é cerca de quatro vezes maior hoje do que seu índice mais baixo no passado, durante o segundo governo Dilma. Estamos diante de um Executivo com dificuldades para coordenar a coalizão ou de um Parlamento reativo a um Executivo que usa os vetos como instrumento de publicidade para sua base eleitoral.

Outras duas variáveis, ligadas ao sistema eleitoral, também mudam a lógica da política como a conhecemos. São elas o fim das coligações em eleições proporcionais e a cláusula de desempenho progressiva, que tem como efeito a diminuição do número de partidos representados no Parlamento e com acesso a recursos públicos. Há mais dinheiro disponível – dos fundos públicos e no Orçamento federal – e teremos em breve menos partidos à mesa. Por óbvio, a disputa entre eles passará a ser não apenas mais acirrada, como também aumentará o poder na mão dos dirigentes e das lideranças partidárias.

Em pouco mais de cinco anos, e curiosamente no bojo do descrédito que acompanhou os políticos, assistimos à inversão do financiamento de campanha, à ampliação da influência do Legislativo federal sobre recursos públicos e a um outro padrão de interação entre os Poderes.

Caímos na ilusão de que o financiamento privado era a origem e a causa dos desvios políticos, o que levou a uma série de mudanças formais ou informais que tornaram o Parlamento um ator mais forte e o acesso a recursos públicos não necessariamente mais transparente. É possível antever que a governabilidade almejada com a diminuição do número de partidos encontre dificuldades de se concretizar, se o Executivo não recuperar para si algumas de suas prerrogativas e se mostrar capaz de coordenar a coalizão. Como é possível ver, na política não existe vácuo de poder.

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CIENTISTA POLÍTICA, É DIRETORA EXECUTIVA DA REDE DE AÇÃO POLÍTICA PELA SUSTENTABILIDADE (RAPS)