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Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Nós, os bobos

Alegando medo dos fantasmas do passado, a elite se prepara para sufragar a maior de todas as corrupções. A imprensa fala sozinha, feito boba.

Atualização:

A cena – fictícia, por favor – tem lugar num restaurante sem encantos, há coisa de duas décadas. Três comensais conversam em tom contido; não querem ser ouvidos pelos clientes das outras mesas e muito menos pelo garçom. São dois homens, ambos parlamentares, e uma mulher. Detentora de um cargo de relevo no Executivo, ela escuta o interlocutor de cabelos escuros, o mais jovem, que, semblante contraído, conta que há denúncias de propina em repartições da cidade. Sua retórica tem escola, embora pouco mais que sussurrada. Ela se mantém insondável. O outro, silente, assiste à preleção com ares de resignação disciplinada, feito a Mona Lisa de bigodes.

Numa pausa polida, a dama pede licença e se dirige ao toalete. Pronto, era a deixa que o mais velho esperava para pôr o colóquio em pratos limpos. Pousando a mão sobre o antebraço do moço, o senhor calmo o encara com serena segurança: “Ela sabe”. Ambos emudecem. “Ela sabe de tudo.” Os dois se entreolham sob o rumorejo do ambiente e o tilintar dos talheres triscando a louça. Quando a senhora retorna, a pauta é outra. Falam do clima, de um aniversário na família, do amigo que recebeu um diagnóstico de câncer. “Me passa o sal, por favor?” A comida pesa na boca de um dos três, que mastiga como se fosse alface a certeza rançosa de que lhe coube o papel de bobo.

Agora, mudemos a chave. Passemos da ficção para a realidade. Deixemos para trás os tempos idos, um tanto hipotéticos, e vamos nos fixar no presente, nos nossos problemas gritantes. Voltemos nossa atenção para outra conversa, não mais num restaurante insosso, mas na esfera pública: escutemos o diálogo da imprensa com a elite brasileira. Não descuidemos dessa tortuosa interlocução, porque aí, também, existe gente no papel de mané.

Todos os dias, o noticiário traz fatos eloquentes que atestam a desumanidade do governo federal, o deboche que o presidente dedica à vida de seus conterrâneos, as políticas intencionais de devastação ambiental (algumas vezes com um ministro em pessoa vistoriando madeira empilhada), a corrosão milicienta que come por dentro as instituições democráticas, o tráfico de influência e, por fim, o cinismo com que militares tornados políticos gargalham dos crimes de tortura, assassinato e ocultação de cadáver praticados durante a ditadura militar. Está tudo aí, na nossa cara. Manchetes que deveriam chocar a opinião pública passam como se fossem o aviso de uma frente fria que vai se aproximando do Rio Grande do Sul.

A imprensa profissional insiste, e seu trabalho árduo cai no vazio, como um folheto com ofertas de supermercado que é esquecido no fundo da caixa de correio das residências elegantes da capital. O que teria de ser desesperador se tornou irrelevante. Nada mais é capaz de despertar a “ira santa” dos que estão por cima.

Aos poucos, a consciência do jornalista começa a ouvir uma advertência que vem não se sabe bem de onde, mas vem: “Eles sabem, meu rapaz. Eles sabem de tudo, minha cara”. A advertência continua: “Eles sabem, e não se incomodam, querem que isso continue. É melhor você não ficar mais amolando com esta conversa negativa. Chega de notícia ruim. Vê se arranja aí uma história edificante pra contar”.

O discurso da imprensa, desde as revoluções liberais no século 18, tem na mira o cidadão ciente de seus direitos. É para ele que os jornais sempre falaram. O jornalismo se distingue de todas as outras formas de relato não por ter títulos, leads e legendas, mas por eleger como seu destinatário o titular do direito à informação. Em poucas palavras, o jornalismo se define por aquele a quem se dirige – e “aquele a quem se dirige”, neste caso, é a fonte do poder, razão pela qual tem o direito e o dever de estar informado.

Agora, a velha receita, tão simples quanto cristalina, entra em crise. O cidadão ciente dos direitos, antes encarregado de fiscalizar o poder, vai gradativamente renunciando ao posto – a começar da elite. Vozes endinheiradas admitem que vão reeleger o presidente da República. A desculpa é não permitir o que chamam de “volta da corrupção”. Reclamam de desvios que ocorreram em governos passados. Ocorre que aquelas condutas lamentáveis, criminosas, foram apuradas, julgadas e muita gente foi parar na cadeia. Nós tínhamos um Estado preparado para enfrentar os ilícitos. Agora, no governo que aí está, também há denúncias de subtrações dolosas, mas o pior é que estão nos tungando, além do erário, o próprio aparelho de Estado. Atenção, senhoras e senhores que não têm mais ouvidos cívicos: estão pilhando a precária democracia que tínhamos. Diante dos olhos da Nação, instituições vêm sendo adulteradas em suas finalidades e passam a buscar metas opostas à sua razão de ser. Corrupção? Ora, não há corrupção maior do que essa, nem mais destrutiva.

A tal elite não liga. Alegando medo dos fantasmas do passado, vai se preparando para fortalecer o fanatismo antidemocrático que já está no poder e sufragar a maior de todas as corrupções. A imprensa fala sozinha, feito boba.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Opinião por Eugênio Bucci
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