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Opinião|O Cerrado grita por socorro

Nesta eleição, o bioma tem de estar na pauta. E, passado o pleito, é urgente que políticas públicas específicas para ele saiam do papel.

Atualização:

Ano de eleições nacionais é sempre um momento de esperança, renovações, avaliações sobre o que foi feito e o que precisa ser melhorado. No caso das pautas ambientais, são muitas as promessas que vemos para a proteção da Amazônia, que exige medidas urgentes para contenção do desmatamento. O Cerrado, entretanto, bioma igualmente importante para a conservação da biodiversidade, a manutenção do equilíbrio climático e a garantia de segurança alimentar, energética e hídrica, é esquecido ou propositalmente deixado de escanteio nos debates públicos. É preciso que candidatos e candidatas tenham atenção ao Cerrado e o contemplem em suas promessas. Passada a corrida pelas urnas, é urgente que políticas públicas específicas para o bioma saiam do papel.

Há anos o Cerrado agoniza por testemunhar a expansão desenfreada da monocultura. Nos últimos tempos o desmatamento atingiu recordes históricos e, atualmente, a agropecuária ocupa 45% da área do bioma, de acordo com o Mapbiomas. Entre agosto de 2020 e julho de 2021, o Cerrado perdeu uma área de vegetação nativa equivalente a seis cidades de São Paulo, a maior área desde 2015 e 8% superior, quando comparada ao ano anterior. A região que chamamos de Matopiba, que compreende as fronteiras entre os Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, concentra 61,3% desse desmatamento.

Um relatório recente divulgado pela iniciativa Tamo de Olho, com financiamento da União Europeia, mostrou que, entre 2007 e 2021, o Estado da Bahia sozinho autorizou o desmatamento de uma área maior do que 94 cidades de Paris. Deste número, 80% estão concentrados no oeste do Estado, região de Cerrado nativo que abastece a bacia do Rio São Francisco. Apesar de o desmatamento ter autorização governamental, a iniciativa identificou irregularidades em todos os processos de autorização de supressão de vegetação analisados. A amostra de 16 casos estudada evidencia que mesmo desmatamentos “legais” são irregulares. A conclusão é de que o desmatamento é uma política de Estado.

Os mais afetados por essa realidade são os povos, as comunidades tradicionais e os agricultores familiares, que vivenciam a violência direta do avanço da fronteira agrícola sobre seus territórios. As consequências do desmatamento extrapolam as populações do campo e refletem fortemente sobre todos os brasileiros, que correm risco de insegurança alimentar, escassez de água e apagões de energia, sem mencionar as tragédias climáticas cada vez mais frequentes.

Em uma década, de 2010 a 2020, o Cerrado perdeu quase 6 milhões de hectares de vegetação nativa. Metade do bioma já foi abaixo e, caso a velocidade dos “correntões” persista, o futuro próximo pode nos reservar sua extinção. A savana mais sociobiodiversa do mundo, responsável sozinha por 5% de toda a biodiversidade da Terra, pode sumir do mapa.

O apocalipse não parece distante para as pessoas que andam pelo nosso Cerrado e testemunham, dia após dia, enormes áreas nativas se transformarem em monocultura de grãos ou pasto para gado. É triste flagrar emas, seriemas e outras espécies animais no meio das imensas plantações de soja, com uma única espécie de alimento no lugar onde outrora havia uma profusão de frutos nativos ricos em valor nutricional. É triste ver veados morrendo de sede no meio da monocultura. E é mais desesperador ainda pensar que este pode ser o futuro da humanidade: mortos de fome e de sede, afogados em grãos de soja.

O Cerrado está em todas as regiões brasileiras, ocupa 24% do território nacional e envolve os Estados de Goiás, Matopiba, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Paraná. É uma área maior do que Portugal, Espanha, França e Itália juntos. A área de lavoura no Brasil triplicou entre 1985 e 2020, chegando a ocupar 55 milhões de hectares no País. Destes, 36 milhões de hectares são dedicados apenas à soja, área maior do que a Itália. Metade disso está no Cerrado, que perdeu 16,8 milhões de hectares para a soja nos últimos 36 anos.

Patrimônio mundial e orgulho brasileiro, o Cerrado é o segundo maior bioma da América Latina, conhecido como berço das águas, abriga os Aquíferos Guarani, Bambuí e Urucuia, além de nascentes de oito das 12 principais regiões hidrográficas do Brasil. No bioma vivem mais de 80 etnias indígenas, além de quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, pescadores artesanais, comunidades de fundo e fecho de pasto, entre outros povos tradicionais que têm seu modo de vida diretamente relacionado com a biodiversidade local.

O Cerrado grita por socorro e nós gritamos pelo Cerrado. Nestas eleições, o bioma tem de estar na pauta. É preciso que candidatos e candidatas se comprometam com alternativas econômicas que incluam a população rural e promovam o uso sustentável da biodiversidade, para que haja redução do desmatamento no Cerrado e desenvolvimento local dos povos, das comunidades tradicionais e dos agricultores familiares. E é preciso que cidadãos e cidadãs votem pelo Cerrado. Se isso não acontecer, corremos o risco de não termos mais pelo que lutar nas próximas eleições nacionais.

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DOUTORANDA EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UnB), É ASSESSORA DO INSTITUTO SOCIEDADE, POPULAÇÃO E NATUREZA (ISPN)

Opinião por Raisa Pina