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Jornalista, escritor e poeta, José Nêumanne escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

O crime no comando

Na farsa democrática, perde tempo o gestor público que tentar governar com planos e projetos

Por José Neumanne
Atualização:

Neste País, Bolsonaro manda às favas o Supremo Tribunal Federal (STF), que desconhece a Constituição para tudo permitir aos donos da lei

A democracia é o império da lei. Na sexta-feira 28, esse truísmo foi falsificado pela maior autoridade da República. Ou não vigora nela o que possa ser definido como governo do povo. Pois Bolsonaro não depôs na Polícia Federal, órgão do Estado, e não de seu governo particular, sob acusação de vazar inquérito sigiloso, a cargo da mesma. Agiu como se estivesse acima da norma legal. O que significa além ou fora dela.

O relator do inquérito no STF, Alexandre de Moraes, determinou que ele contasse de corpo presente à autoridade da polícia judiciária o que tem a informar a respeito. “Não impugnar os termos da intimação que lhe foi feita pelo relator, depois de pedir prorrogação, e na última hora dizer que não vai, foi acintoso”, disse o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do STF Ayres Britto, em entrevista à CNN. Acintoso, doutor? Convenhamos, “de propósito” (Aurélio, p. 36) é muito pouco, quase nada. “De caso pensado”?!

Alguém, em sã consciência, imaginaria que o capitão reformado, por menos inteligente que seja, tenha faltado ao compromisso com as leis da República, à qual jurou servir no dia da posse em seu maior cargo, sem “saber”?

Por mais néscio que o chefe do governo venha a ser, ninguém imagina que ele não seja capaz de fazer um raciocínio simples, como o de situar quem se comporta “acima da lei” à margem, portanto, fora dela, ou seja, violando-a como um punguista, um assassino ou um gatuno. De fato, o fora da lei em questão tem avançado em “provocações” (aí até o substantivo usado por Britto cabe) contra as instituições democráticas, e não tem tido seus avanços e arreganhos detidos ou punidos para valer. Resta saber o que pode o STF fazer para recuperar a prerrogativa republicana de última instância de julgamento dos mandatários dos outros dois Poderes. Nas outras vezes em que foi testado, recuou. Na presidência do Senado, Renan Calheiros descumpriu decisão de deixá-la e ganhou a queda de braço. O próprio atual chefe do Poder Executivo compareceu a outro depoimento na mesma instituição policial (autônoma por definição), após longa espera de meses por decisão do nada excelso pretório sobre se deveria fazê-lo por escrito ou, como se diz no jargão jurídico, de forma presencial: depôs quando quis, onde escolheu, diante de quem preferiu e dispensou a presença de advogados de seu ex-ministro Sérgio Moro.

O servidor presidencial Bruno Bianco Leal, que não se perderá negando o que insinua o segundo sobrenome, no papel oficial de advogado-geral da União, apresentou ao STF “agravo regimental”, alegando “direito de ausência”. Certamente, sem querer, o douto funcionário definiu o estilo de desgovernar o País do chefe-mor, pois este abusa da ausência como ninguém o fez e dificilmente alguém o fará. Certo estará ele de que a dita Suprema Corte não poderá recorrer ao vulgar “sob vara” para submeter o número um a uma condução coercitiva.

Após ter submetido a Nação impotente a um espetáculo de baixo circo, anulando processos que tramitaram cinco anos numa vara criminal em Curitiba, num tribunal regional em Porto Alegre e em mais dois tribunais das alturas em Brasília, sempre por unanimidade, e nos quais o ex-presidente Lula foi condenado, zerou penas. Agora, livre das amarras da Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, o petista prepara-se para esmagar o foragido da PF em eleição na qual o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) promete rigor contra as fake news, indultados na de 2018, em que o vencedor usou disparos ilegais de WhatsApp. Na prevista disputa de reeleições remota e recente, o presidente não precisa de mais nada para assegurar o direito de se ausentar do cumprimento do dura lex sed lex. Basta um voto, e ele tem dois no STF, para tornar a votação plenária exigida pela Advocacia-Geral da União (AGU) uma farsa sem dilema atroz. Se André Mendonça, primeiro a votar, pedir vista, dispensará o segundo, Nunes Marques, de prestar o mesmo inestimável e facílimo serviço sujo de protelar para o chefão ficar pairando sobre a lei, tal qual abutre sinistro.

Ao contrário de Dilma Rousseff, que perdeu a impunidade de monarca por brigar com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o Caranguejo da Odebrecht, Bolsonaro instalou o que o professor da Universidade de São Paulo (USP) José Augusto Guilhon Albuquerque, no Nêumanne Entrevista no Portal do Estadão, batizou de “presidencialismo de orçamento”. Na farsa democrática, em que o presidente eleito legitimamente trata as instituições republicanas qual lixo tóxico, perde tempo o gestor público que tentar governar com planos e projetos. Basta destinar verbas bilionárias aos Fundos Eleitoral e Partidário e às emendas do relator e, assim, garantir o anonimato de seus beneficiários e a comunidade de interesses escusos na garantia da harmonia dos Três Poderes. Nesse sistema, como disse em outra entrevista no Blog do Nêumanne o deputado federal Julian Lemos, Arthur Lira não é base do presidente na Câmara, mas Bolsonaro sim é “base” do Centrão no Executivo. O resto é lorota para bovino dormitar. E, desse jeitinho, o crime, e não a lei, impera por aqui.

JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

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