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Opinião|O (des)controle dos atos de improbidade administrativa

Há nos debates sobre as alterações da lei mais que paradoxo e ironia, mas muita estratégia.

Atualização:

As alterações da chamada Lei da Improbidade Administrativa têm provocado intenso debate no País. De um lado, a sociedade exige a punição dos gestores que aplicam mal os recursos públicos, assim como punição dos políticos que, valendo-se do seu círculo de influência, não se pejam de favorecer alguém quando disso possam retirar algum proveito. De outro lado, gestores sustentam que não podem ser punidos por ações que, conquanto venham a se revelar afinal inadequadas, acham-se nos limites da discricionariedade administrativa, reclamando os políticos, por sua vez, da punição por fato de terceiro, fundada na simples nomeação.

Seja como for, as alterações objeto do Projeto de Lei (PL) n.º 10.887/2018, da Câmara dos Deputados, têm objetivos que vão muito além da mera redução do rol de condutas ímprobas, do afastamento da punição por culpa, da modificação do termo inicial da prescrição e do acréscimo da regra da prescrição intercorrente.

Há aspectos processuais que, por não interferirem diretamente com a noção de improbidade administrativa, acabam atuando, de maneira não tão perceptível, para alterar o entendimento que se formou, a partir da Constituição de 1988, acerca da moralidade administrativa, um dos princípios que regem a administração pública.

Algumas dessas questões processuais surgem no contexto daquilo que se convencionou chamar de “princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”, fórmulas tomadas de empréstimo do campo do Direito Penal, historicamente concebidas para assegurar o status libertatis, e que os operadores do Direito, com muito engenho, transportaram para o terreno da improbidade administrativa, cujo combate de forma nenhuma interfere com a liberdade do acusado.

De acordo com o Projeto de Lei n.º 10.887/2018, o Ministério Público (que passa a ser o único titular da ação de improbidade administrativa), na descrição das condutas atribuídas ao réu, não poderá indicar mais de um tipo normativo – limitação que não se justifica, pois a conduta comissiva ou omissiva do acusado poderá se ajustar a um ou mais artigos de lei. Ao juiz é vedado, de acordo com o projeto, condenar o requerido como incurso em tipo normativo diverso daquele mencionado na petição, restrição que não se admite nem mesmo no processo penal, porque o réu se defende dos fatos a ele atribuídos, e não da capitulação.

Ampliando de maneira absolutamente artificial as construções do chamado “direito administrativo sancionador”, o projeto de lei veda a inversão do ônus da prova em desfavor do réu – afastando regra processual que se aplica diante da excessiva dificuldade probatória –, com o que o legislador introduz no âmbito da ação civil de improbidade administrativa, sem dizer, o princípio da presunção da inocência, que somente faz sentido quando está em jogo o status libertatis, o que não é o caso.

Este estratagema se mostra ainda mais engenhoso se se tiver em conta que o prazo de que o titular da ação dispõe para obter a condenação corre a partir do fato atribuído ao réu, de forma que, encontrando-se o acusado de improbidade ainda no exercício do mandato ou do cargo, isso poderá dificultar a obtenção da prova necessária ao julgamento de procedência. De acordo com o texto legal vigente, referido prazo começa a contar após o término do exercício do mandato ou do cargo.

Diga-se mais, considerado o referido “direito administrativo sancionador” – que, segundo o Projeto de Lei n.º 10.887/2018, aplica-se ao “sistema de improbidade”, a sugerir tratar-se de autêntico instituto de direito material –, ocorreria a algum operador do Direito mais criativo invocar a norma da retroatividade benigna – novamente estendendo para o campo da improbidade administrativa princípio que, na forma da Constituição, aplica-se apenas ao Direito Penal –, com o que milhares de ações em curso no País, necessariamente, seriam julgadas improcedentes. Além disso, alguns poderiam sustentar que a nova lei, mais favorável, alcançaria os processos definitivamente julgados, já em fase de cumprimento de sentença.

E, por mais imoral que isso possa parecer – de acordo com o senso comum –, estaria o próprio assessor jurídico que “emitiu o parecer atestando a legalidade prévia dos atos administrativos praticados pelo administrador público” (agente remunerado pelos cofres públicos) constituído no dever jurídico de patrocinar o pedido de extinção do processo ou do cumprimento da sentença, interpretação que se retira da norma do artigo 17, § 20, da Lei Federal n.º 8.429/92, com a redação do projeto de lei que agora volta à Câmara dos Deputados para exame das emendas do Senado Federal (PL n.º 2.505, de 2021).

Enfim, há nisso tudo mais que paradoxo e ironia, mas muita estratégia.

* MESTRE E DOUTOR EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, PROFESSOR DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DA PUC-SP, É DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO (TJ-SP)

Opinião por Luiz Sergio Fernandes de Souza