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Advogado e Jornalista

Opinião|O incrível itinerário da adoção

Em minha ignorância e preconceito, não havia interseção possível entre a burocracia estatal e a dimensão de afeto própria das relações familiares.

Atualização:

Decorridos tantos séculos, transformadas tantas culturas, desenvolvidas tantas tecnologias, ainda ressoa em muitos lares a voz de Raquel a Jacó: “Dá-me filhos, senão eu morro”. Homenageamos as mães e os pais, cada vez mais entendemos e homenageamos as pessoas que voluntariamente não querem ter filhos, mas temos dificuldade de lidar com a frustração da ausência de filhos. É uma dessas situações-limite que questionam, de forma radical, o sentido da vida. De que vale todo o restante – amigos, profissão, viagens, bens, reconhecimento, até mesmo os amores – quando a vida parece frustrar-se em sua vertente mais íntima?

Há uns anos, minha família esteve em circunstâncias parecidas, o que suscitou entrar em contato com uma realidade até então distante de meu horizonte vital: a adoção. Aproveitando a proximidade do Dia dos Pais, compartilho minha experiência com as fases iniciais do percurso para adotar uma criança. Foi tudo muito diferente do que imaginava. Encontrei não apenas um Estado eficiente, mas profundamente humano.

Até então, eu pensava que o poder público era incapaz de lidar satisfatoriamente com tudo o que se relaciona com crianças e famílias. Em minha ignorância e preconceito, não havia interseção possível entre a burocracia estatal e a dimensão de afeto própria das relações familiares. Minhas ideias foram por terra, no entanto, ao lidar com os profissionais da Vara da Infância e Juventude: atenciosos, qualificados e sinceramente comprometidos com a missão de encontrar o melhor lar possível para cada criança, para cada grupo de irmãos. Como é injusta a percepção, tão repetida em algumas esferas sociais, de que nada funciona bem no serviço público.

Na etapa prévia ao processo de habilitação, foi preciso assistir a um curso sobre adoção. Novamente, uma grande surpresa. Menciono aqui o que mais me desconcertou. Não foram as artes, a literatura, o cinema ou mesmo os amigos. Foram palestras a que assisti por imposição de um órgão estatal que me fizeram descobrir uma realidade até então apenas intuída: a adoção como caminho de genuína maternidade e de genuína paternidade. Era uma trilha diferente e desconhecida, cheia de dúvidas e desafios, a suscitar perplexidade também entre familiares e amigos, mas que, a cada dia, se mostrava mais real, igualmente significativa.

Com o tempo, aquelas aulas, no início tão desconcertantes, foram parecendo necessárias não apenas aos postulantes à adoção, mas a todos os pretendentes à maternidade e à paternidade. Eram um banho de vida real, expondo o quão desafiador pode ser criar/adotar uma criança. Um dos objetivos do curso preparatório é precisamente ajudar a que os participantes tenham a avaliação mais realista possível de sua capacidade de assumir a maternidade e a paternidade de outro ser humano – e, assim, reduzir a ocorrência de casos de devolução de crianças adotadas.

Ao mesmo tempo, o curso – tão realista e pródigo em narrar histórias desafiadoras – era um banho de esperança e otimismo, desvelando o quão bonita a vida pode ser. E isso relacionava-se não tanto com a possibilidade de ver-se realizar o sonho de um filho – a esse respeito, as aulas despertavam muitos e pertinentes questionamentos –, mas com constatar como a adoção é um caminho de generosidade possível para pessoas comuns. Não é preciso ser super herói para percorrê-lo. Muitas mães e pais o trilham e, mesmo com suas manias, carências e defeitos, conseguem exercer, na vida de outro ser humano, esta profunda dimensão de carinho, cuidado e formação: de maternidade e paternidade, de família.

No processo de habilitação, descortinou-se um sentido de maternidade e paternidade muitas vezes esquecido nos tempos atuais. Tudo no processo estava orientado em função da criança, e não dos desejos ou das carências dos adultos. Não que os desejos dos adultos fossem ignorados, mas também eles estavam a serviço do bem da criança, e não o inverso.

O processo de habilitação possibilita questionar muitas ideias e ilusões sobre a maternidade e a paternidade. Sejam ou não filhos biológicos, não há nenhuma segurança sobre o resultado da criação/educação de uma criança. Nesse sentido, as categorias de sucesso e fracasso com que muitas mães e pais se julgam não são apenas injustas, mas rigorosamente inadequadas. Ser mãe, ser pai, não é produzir um resultado. É cuidar, é prover as condições possíveis para a autonomia, é entrar numa espiral, sem fim, de compromisso e doação. Como mostram muitas adoções, a capacidade humana – tanto da criança como dos pais – de ressignificar tantos fatos da vida é surpreendente. A vida é muito mais maleável do que nossas rigidezes.

Este texto é uma pequena homenagem a todos os que ajudam a tornar mais acessível e mais seguro o caminho da adoção, como o fazem os grupos de apoio. Não é um processo fácil. Não é automático. Não basta querer. Muitas vezes, esse percurso tem tons, ritmos e desfechos muito diferentes daqueles inicialmente sonhados. Exatamente como ocorre na maternidade e na paternidade biológicas.

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ADVOGADO E JORNALISTA

Opinião por Nicolau da Rocha Cavalcanti
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