EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, professor do IDP, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e o primeiro diretor executivo da IFI. Felipe Scudeler Salto escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O joio e o trigo nas contas do governo

Em 2022, as receitas perderão fôlego, os juros estarão bem mais altos e o déficit deverá ser o dobro em relação a 2021

Foto do author Felipe Salto
Atualização:

As receitas do governo são um porcentual da produção, do consumo e da renda. Se a inflação aumenta, essas bases incham e a receita cresce. Já a despesa é mais afetada pela inflação passada. É preciso escrutinar os dados fiscais de 2021 para evitar análises equivocadas sobre o déficit de R$ 35,1 bilhões. Houve melhora, mas por conta de fatores transitórios, principalmente inflação, dólar e preços de commodities. Isso não se repetirá em 2022.

A receita líquida do governo central deflacionada pelo IPCA cresceu 21,2%, entre 2020 e 2021, depois de diminuir 13,5% no período anterior. Isto é, o tombo de 2020 foi maior que o do PIB (recessão de 3,9%) e a recuperação, em 2021, superou o crescimento da economia (projetado em 4,6%). Essa distorção das taxas da arrecadação vis-à-vis às do PIB é típica de períodos de recessão. Para o médio prazo, a tendência é a receita caminhar com a economia. 

Mesmo assim, a alta real de 21,2% impressiona. Poderia sugerir uma mudança de dinâmica a autorizar mais gastos. Ocorre que a evolução do dólar e dos preços das commodities precisa ser contemplada na análise. Quando deflacionada pelo IGP-M, índice mais sensível aos preços das commodities e ao dólar, a receita líquida cai 27,4%, em 2020, para subir 11,3% em 2021. Vamo-nos entender: a economia recuperou-se, após a recessão de 2020, e então começou a andar de lado. Não há razão para projetar uma dinâmica permanentemente melhor das receitas. 

Em 2022, a Instituição Fiscal Independente (IFI) prevê crescimento do PIB de 0,5% e inflação na metade do que foi em 2021. Não podemos cair na esparrela de adotar o reflexo no retrovisor como um bom prognóstico. 

Para averiguar melhor o peso da inflação, recorro a dados históricos. De 1985 a 1993, quando a inflação anual (IPCA) saiu de 242% para 2.477%, houve superávit primário anual médio de 1,6% do PIB no setor público. As receitas seguiam a inflação de perto; já as despesas, nem sempre, dada a enorme discricionariedade quanto ao reajuste do funcionalismo e mesmo do salário mínimo. A inflação era uma aliada poderosa para reduzir as despesas sem maior esforço, o que redundava em superávits primários. Mas eles não sobreviveram quando a inflação caiu.

Mais recentemente, entre 2014 e 2015, a inflação também acelerou. Mas por que o déficit primário do governo central superou a estimativa do PLDO – Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (déficit de R$ 114,7 bilhões), totalizando R$ 120,5 bilhões, em vez de ficar menor? Primeiro, a inflação prevista no PLDO era de 4,5% e ficou em 10,7%, mas o crescimento do PIB real previsto era de 3%, enquanto o resultado foi uma recessão de 3,6%. Segundo, os preços das commodities caíram. Terceiro, houve pagamento das chamadas pedaladas fiscais (R$ 55,8 bilhões). Nada é tão simples quanto parece.

Então, não houve nada de bom na cena fiscal dos últimos anos? Do lado das despesas, alguns eventos merecem destaque. Primeiro, os gastos realizados contra a covid-19 passaram de R$ 524 bilhões, em 2020, para menos de 1/4 disso em 2021. Segundo, não houve reajuste salarial a servidores e o salário mínimo só foi corrigido pela inflação. Terceiro, a reforma da Previdência conteve as emissões de novos benefícios, que estão subindo menos de 1%. Há quatro anos, cresciam 2,5% em 12 meses.

Entre 2020 e 2021, as despesas caíram de 26,1% para 18,6% do PIB. Desta queda de 7,5 pontos porcentuais (p.p.), boa parte resultou da redução das despesas extraordinárias ligadas à pandemia; o restante, da corrosão inflacionária. Os gastos de pessoal caíram 0,5 p.p. do PIB, entre 2020 e 2021, a Previdência diminuiu 0,7 p.p., o término da ajuda a Estados e municípios colaborou com menos 1 p.p., o benefício de prestação continuada, o abono salarial e o seguro desemprego caíram 0,4 p.p. e os créditos extraordinários no âmbito do combate à pandemia diminuíram 4,4 p.p. do PIB. O meio ponto restante refere-se à soma das variações de outras rubricas.

As despesas indexadas ao salário mínimo serão pressionadas, em 2022, porque ele aumentou 10,2%, mas a inflação será pouco maior que 5%.

Além disso, a despesa de 2021 ficou 0,7 p.p. do PIB menor do que a observada em 2018 (19,3% do PIB). Cerca de 1/3 dessa queda se deveu ao gasto previdenciário e o restante, à folha. Para 2022, esse patamar de gastos primários (sem juros da dívida), de 18,6% do PIB, não deve sofrer grande mudança. 

Contudo, o rombo de R$ 112,6 bilhões no teto de gastos, neste ano, pressionará permanentemente as despesas. Não custa lembrar, também, o calote de R$ 50 bilhões nos precatórios: aumento da dívida pública. A redução de despesas prometida pelo teto, em 2016, era de 4,5 p.p. do PIB até 2026. Transcorridos 2/3 do tempo, a despesa deveria ficar em 16,9% do PIB, mas terminará 2022 R$ 150 bilhões maior.

Em 2022, as receitas perderão fôlego e os juros estarão bem mais altos. O governo prevê o dobro de déficit em relação a 2021. Com honestidade intelectual, o joio e o trigo podem ser devidamente apartados. Inflação nunca é boa coisa.

*DIRETOR-EXECUTIVO E RESPONSÁVEL PELA IMPLANTAÇÃO DA IFI. CO-ORGANIZADOR, COM JOÃO VILLAVERDE E LAURA KARPUSKA, É AUTOR DO LIVRO “RECONSTRUÇÃO: O BRASIL NOS ANOS 20” (SARAIVA, FEV/22)

Opinião por Felipe Salto

Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.