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Opinião|O perigo vai além do perigoso coronavírus

O vírus letal e ameaçador substitui o senso crítico pela crença no absurdo

Atualização:

O coronavírus é assustador, até por vir de longe, tal qual nuvem de vendaval, mas a peste concreta é outra. E é maior, abrangente e mortífera. O vírus letal que nos rodeia é de outro tipo e está entre nós há tempos.

Grudou-se ao dia a dia e se propaga em silêncio. Aos poucos, impregna-se no modo de vida e extermina tudo sem que se perceba, pois o dia a dia já assimilou os sintomas como “normalidade”.

Esse vírus quase imperceptível supera até mesmo os da peste bubônica, que devastou a Europa na Idade Média. É letal porque nos desvia do real, cria um mundo enlouquecido e falso, mata a percepção e torna impossível distinguir o bem do mal.

E assim passamos a viver sem ter vida. Quase como cadáver que se perfuma para não sentir seu fedor.

O vírus letal e ameaçador consiste em substituir o senso crítico pela crença ingênua no absurdo. É terrível por não ter materialidade em si. Pode estar em todas as partes e não ser visível.

Como identificá-lo, então? Basta analisar o todo, em profundidade e abandonando a ingenuidade.

Na política, o vírus nos fez aplaudir a fúria ignorante que vê no ódio a forma de combater a violência. Ou nos leva a admitir que invoquem o nome de Deus em vão para negar a ciência quando nos alerta sobre a Amazônia e as mudanças climáticas. Assim, abrimos portas à feitiçaria e ao absurdo, tal qual – antes – aplaudimos simpáticos ladrões travestidos de líderes populares.

Mais ainda: cegos, suportamos o narcotráfico e a corrupção. Ou achamos que educar é ensinar a ler, escrever e decorar a tabuada, sem formar cidadãos conscientes da solidária missão humana.

O vírus é letal ao destruir os valores da existência e nos transformar, apenas, em consumidores, tal qual máquinas movidas a óleo. Até no entretenimento o vírus nos torna lobos e nos faz aplaudir o “tum tum tum” grotesco e sem harmonia da falsa “nova música”, desdenhando Beethoven, Mozart, Geraldo Vandré, Chico Buarque ou a melodiosa canção sertaneja.

E é criminosamente letal porque paralisa e mata os passos da humanidade para superar o tempo escuro das cavernas. O vírus avançou tanto que já existe quem – no alto do poleiro do poder – diga que a Terra “é plana” ou negue o evolucionismo de Darwin. E o pior é que deixamos por isso mesmo, sem expulsar o impostor.

Dias atrás este jornal revelou que o desempenho dos alunos do terceiro ano do ensino médio na rede estadual de São Paulo teve queda em Língua Portuguesa e Matemática pela primeira vez desde 2013. Para corrigir não basta modificar o sistema educacional em si, nem “substituir o quadro negro e o giz pelo computador”, como apregoam alguns. O problema é mais amplo, mas o vírus nos faz cegos e nada vemos.

Hoje há uma escola fora da escola. Há anos (e em cores) está na televisão e, mais recentemente, nas redes sociais ou na parafernália do YouTube. Entra a nossos lares como assaltante, sem pedir licença. Crianças e jovens se educam pelo que gritam os youtubers destituídos de experiência ou formação intelectual.

O linguajar habitual desses “mestres” é tosco e pobre, às vezes grosseiro, além de simplificador. Mas formam consciências e, de fato, impõem estilos de vida. Que tipo de jovens estamos formando Brasil afora?

A violência é queixa geral, mas a contenção se limita a mitigar o crime por meio da ação da polícia ou medidas afins. Não vamos às causas do horror que a violência extravasa.

Quase tudo se tornou violento na moderna sociedade tecnológica. Para levar a consumir, vale até o absurdo. No mais direto meio de comunicação, a TV, quase tudo induz à violência ou a apresenta como algo costumeiro, parte do dia a dia, não como advertência a evitar. Até a publicidade apela a acordes ou situações violentas e absurdas, sem falar das telenovelas ou dos noticiários.

Os filmes infantis estão cheios de violência, mesmo que mostrem (ao final) o “triunfo dos bons”. Nos jogos eletrônicos (que dizemos games, em inglês) triunfa quem mata mais. E o brinquedo da infância habitua a mente infantil a matar na vida adulta.

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A drogadição completa o arco do absurdo. O vírus da desatenção se propaga e vai ao clímax com nosso desdém em preservar o planeta. A ciência, a ONU e o papa advertem sobre a crise do clima, mas continuamos surdos e inertes, ajudando a agravá-la.

Não respeitamos sequer a água, que deu vida ao planeta, e poluímos os rios de onde tiramos, depois, o que vamos beber. O Rio de Janeiro vive, hoje, uma crise d’água maior que a paulistana de anos atrás, ambas originadas no descaso. Nesta semana, este jornal mostrou como o outrora caudaloso Tocantins é, hoje, um rio que já não corre, por causa das hidrelétricas desastradamente construídas anos atrás.

O coronavírus é ameaça brutal, mas passageira, e será vencido pela pesquisa científica. O outro vírus, porém, é ardiloso e nos desumaniza ao nos tornar coisa vendável, como se a vida e o planeta se comprassem em supermercado.

*JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Opinião por Flávio Tavares