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Economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP, consultor econômico e de ensino superior, Roberto Macedo escreve na primeira e na terceira quinta-feira do mês na seção Espaço Aberto

Opinião|O polímata Jô Soares

Tivesse Burke ficado mais tempo no Brasil, provavelmente teria incluído em sua lista o insubstituível Jô, que bem desempenhou muitas atividades.

Atualização:

O tema acima me foi sugerido por dois amigos e leitores, Andrea Matarazzo e Wilson Victorio Rodrigues, e agradeço a ambos. Disseram-me algo assim: “Você deveria escrever um artigo no Estadão mostrando o Jô Soares como polímata, termo que já usou ao escrever para o jornal”.

Volto, assim, ao termo para sintetizar a diversificada carreira do Jô. Conforme já escrevi neste espaço, aprendi o termo polímata ao adquirir livro de Peter Burke assim intitulado e subtitulado: Polímata – Uma História Cultural, de Leonardo da Vinci a Susan Sontag (Editora Unesp, 2020, 475 páginas). Burke é professor emérito de História Cultural na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Esteve noutras universidades e, entre 1994 e 1995, foi professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).

Burke refere-se a polímata como “alguém que se interessa por muitos assuntos e aprende muitos deles”. Concentrado no conhecimento acadêmico, propôs-se a “falar de estudiosos com interesses que eram ‘enciclopédicos’ no sentido original de percorrer todo o ‘curso’ ou ‘currículo’ intelectual ou, de alguma maneira, determinada parte importante desse currículo”. A. C. Cowling, na contracapa do livro, chamou a obra de “absorvente e polimática”. De fato, conforme a editora a apresenta, ela é por si mesma abrangente, pois Burke identificou, num “relato envolvente e erudito, (…) 500 polímatas ocidentais”.

A primeira orelha da capa do livro resume o enfoque de Burke, dizendo que, ao analisar os polímatas, “explora suas conquistas abrangentes e evidencia como sua ascensão correspondeu a um rápido crescimento do conhecimento nas eras da invenção da impressão, da descoberta do Novo Mundo e da Revolução Científica. Só mais recentemente é que a aceleração do conhecimento levou a maior especialização e a um ambiente que dá menos apoio a acadêmicos e cientistas de amplo espectro”.

No livro, grande atenção é dada a Leonardo da Vinci. Um retrato dele ocupa quase toda a capa. É dito que Da Vinci aprendeu a pintar e esculpir em Florença, depois foi para Milão, onde chamou a atenção de um duque, a quem prometeu “fazer pontes, canhões, catapultas e – no décimo lugar de sua lista de afazeres – obras de escultura e arquitetura”.

O educador Charles Fadel, professor da Universidade Harvard, disse numa palestra, quando visitou o Brasil em 2018, que o perfil educacional de uma pessoa deve ter o formado de um T, com a linha vertical significando especialização e a horizontal, um conhecimento diversificado que acompanhe o surgimento de novidades ocupacionais, inclusive porque as competências existentes podem entrar em decadência, o que vem acontecendo frequentemente com a digitalização, sendo necessário adquirir outra ou outras.

Como economista, eu quis ver se o autor também havia encontrado polímatas nessa profissão. Como esperava, Burke incluiu em sua lista John Keynes, por muitos considerado o mais importante economista do século passado. Segundo o livro, um amigo descreveu Keynes como “fidalgo, funcionário público, especulador, empresário, jornalista, escritor, fazendeiro, mercador de obras de arte, administrador de teatro, colecionador de livros e meia dúzia de outras coisas”. Na vida pessoal, foi homossexual antes de se casar com uma bailarina. O próprio Keynes observou que “o mestre em Economia deve contar com uma rara combinação de dons. Deve atingir um alto padrão em várias direções diferentes e combinar talentos que nem sempre se encontram juntos. Deve ser, em certa medida, matemático, historiador, estadista e filósofo”.

Passando a Jô Soares, meu primeiro contato com ele ocorreu em meados dos anos 1960. Eu estava na audiência de um show para estudantes da USP no qual ele se apresentou como cômico. E lembro-me de que, entre outras tiradas, imitou várias vezes o barulho de uma motocicleta imaginária que não pegava com o uso do pedal de partida, recorrendo ao termo Ma-ma-ma-mas-sa-chus-setts..., e alongando este último trecho. Saiu muito aplaudido.

O extenso noticiário sobre Jô Soares em seguida ao seu falecimento aponta que bem desempenhou muitas atividades. Pesquisando aqui e ali na internet, incluem as de humorista, apresentador de televisão, autor de livros e contos, poliglota, entrevistador, dramaturgo, diretor teatral, ator e figura pública, tudo sempre com muita elegância. E não tenho a pretensão de que essa lista seja completa. Nas suas entrevistas, impressionavam-me o conhecimento que tinha de temas tão diversos como os cultivados por seus entrevistados e sua capacidade de adentrar outros que não conhecia.

Creio que, se Peter Burke tivesse ficado mais tempo no Brasil e tomado mais contato com a obra do insubstituível Jô Soares, provavelmente o teria incluído na sua lista de polímatas. Nosso país é cheio de unímatas que poderiam ser melhores pessoas se aprendessem a buscar vários caminhos.

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ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), PROFESSOR SÊNIOR DA USP, É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR

Opinião por Roberto Macedo
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