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Opinião|Obstáculos para a generosidade

No Brasil, o grande doador é tratado com desconfiança, quase como criminoso

Atualização:

A doação de uma luxuosa Lamborghini Huracán ao papa Francisco virou notícia mundialmente em 2017. Por determinação do papa, o veículo superesportivo italiano foi leiloado em maio de 2018 e rendeu cerca de R$ 3 milhões. Os recursos foram dedicados integralmente pelo Vaticano a causas humanitárias em regiões de extrema necessidade, especialmente em apoio a famílias pobres no Iraque e na África.

Uma doação generosa, que produz receita para importantes obras assistenciais, parece algo trivial e simples de acontecer. Em muitos países de fato é assim e doadores respondem com atos de generosidade que muitas vezes viram manchete. Foi assim quando a histórica Catedral de Notre-Dame, em Paris, recebeu doações expressivas após o incêndio que destruiu parte de sua estrutura, em abril deste ano. As contribuições chegavam de todas as partes do mundo, até mesmo de alguns notáveis brasileiros.

Infelizmente, é raro ver o mesmo no Brasil, não porque não existam pessoas dispostas a doar com generosidade, mas porque os obstáculos legais, burocráticos, tributários e até culturais interrompem e até inviabilizam grandes doações. Assistimos frequentemente a demonstrações da disposição de doar dos brasileiros, especialmente quando acontecem grandes catástrofes, como enchentes, deslizamentos ou rompimentos de barreiras de rejeitos de mineração, como os de Mariana e Brumadinho. O volume de bens e produtos doados chega a ser tão grande que as autoridades pedem ao público que interrompa o envio. Os problemas surgem para doações de maior valor, que poderiam aliviar essas situações de forma mais acelerada.

Seria natural e justo que os mais abastados participassem com contribuições de peso, como em outros países. Entendemos melhor o que atrapalha isso no Brasil no início deste ano, quando ocorreu nosso exemplo similar ao da Lamborghini doada ao papa. Um empresário, frequente apoiador do trabalho de nossa instituição, a Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI), ofereceu-nos um veículo da mesma categoria como doação. Rapidamente desenvolvemos estratégias para utilizar o veículo e gerar recursos, pois todas as nossas atividades são sustentadas por doações, quase sempre de pequenos valores. Exposições públicas, campanhas em parceria com a mídia, culminando com um sorteio, teriam repercussão nacional e poderiam arrecadar bem mais do que o valor do bem doado, como no caso da Lamborghini.

Seria uma contribuição inestimável para as inúmeras ações de nossa entidade, que incluem missões humanitárias pelo Brasil e o mundo, quase sempre para auxiliar em situações extremas. Do terremoto no Nepal à saga dos refugiados sírios e a enchentes no Uruguai, missionários da fraternidade já cumpriram 24 missões humanitárias pelo planeta. No Brasil, estivemos em Mariana e Brumadinho e desde 2016 sustentamos um esforço permanente em Roraima, administrando cinco abrigos para milhares de refugiados venezuelanos, que ainda chegam ao Brasil diariamente às centenas. Nada disso seria possível sem doações.

Em 30 anos, nossas iniciativas já envolveram mais de 60 mil voluntários. Imaginamos que o carro doado seria uma ajuda vital, mas o entusiasmo inicial virou decepção quando conhecemos os obstáculos para que qualquer plano envolvendo o veículo se tornasse viável. Nossos colaboradores na área jurídica nos mostraram que o custo e o esforço exigidos para simplesmente receber a doação do veículo e depois executar nossas ideias estavam além de nossas condições e estrutura.

O episódio ajudou-nos a entender por que pessoas que poderiam apoiar de forma impactante esforços como os nossos, muitas vezes decidem não se envolver. Leis atravancadas, tributação desproporcional e burocracia excessiva e redundante acabam transmitindo uma sensação negativa e lamentável, que transforma um ato digno de aplausos em motivo para questionamento e suspeita. Estranhamente, em vez de algo benéfico para a sociedade, o grande doador acaba tratado com desconfiança, quase como criminoso. Como se o fato de ter a condição de doar sinalizasse que algo, necessariamente, estaria irregular em sua vida.

A experiência com o carro esportivo abriu-nos uma janela para algo que afeta todas as instituições que dependem da generosidade humana, como a nossa. Impossibilitados de utilizar o bem doado para gerar o máximo de recursos, fomos obrigados a interromper o próprio ato da doação. O doador optou por tentar, ele mesmo, vender o veículo e transferir os recursos obtidos para a fraternidade. Fatalmente o valor arrecadado será inferior ao que poderia ser, fossem nossas leis e excessivas exigências burocráticas mais parecidas com as que facilitam e encorajam doações em diversos países.

Esta é uma reflexão essencial que foi feita logo após o Dia de Doar, em 3 de dezembro, ligado ao movimento Giving Tuesday, criado nos Estados Unidos, e com o período de festas de fim de ano se aproximando. Realizado no Brasil desde 2014, o Dia de Doar é um estímulo importante para que mais pessoas escolham boas causas e façam doações regularmente, não apenas quando desastres acontecem. Mas esse objetivo só poderá ser atingido no Brasil se forem feitas, paralelamente, mudanças profundas que simplifiquem e integrem as exigências para que grandes doadores se sintam mais à vontade para contribuir.

Com isso, os mesmos brasileiros que doaram para a reforma de Notre-Dame talvez doem também no Brasil. Em episódios como o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro de 2018, talvez tenhamos uma resposta decisiva para que perdas tão dramáticas para o patrimônio cultural brasileiro sejam recuperadas mais rapidamente, com a justa e proporcional colaboração daqueles que podem, devem e desejam colaborar.

* GESTOR-GERAL DA FFHI, ESTÁ NA COMUNIDADE FIGUEIRA DESDE 1989 E DEDICA-SE AO DESENVOLVIMENTO DAS COMUNIDADES E DE SUAS PRINCIPAIS ATIVIDADES

Opinião por Frei Luciano