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Opinião|Os cidadãos invisíveis

Depois dos golpes e lições da pandemia, os eleitos terão a responsabilidade de realizar políticas públicas mais realistas.

Atualização:

A Constituição federal de 1988, cujo texto é aderente à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, sintetiza, em seu Título II, as prerrogativas e garantias fundamentais das pessoas, relativas à vida, à igualdade, à dignidade, à segurança, à honra, à liberdade e à propriedade. Contudo, após 34 anos da promulgação da Carta Magna, temos pouco a comemorar.

É o que se constata em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com estimativas projetadas a partir do último Censo Demográfico, há 5,12 milhões de domicílios em cerca de 13 mil favelas e palafitas no País. Tais comunidades localizam-se em 734 municípios, em todos os Estados e no Distrito Federal. Os números relativos a esses problemas vêm aumentando bastante desde 2010, quando eram 3,22 milhões de habitações subnormais, em 323 cidades.

O problema referente às moradias irregulares, sempre atrelado à ocupação ilegal e ao uso inadequado do solo, não se limita aos grandes municípios e metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo. O levantamento mostra que essas comunidades estão localizadas em grande proporção em cidades pequenas e capitais do Norte e do Nordeste. O município de Vitória do Jari, no Amapá, onde vivem mais de 15 mil pessoas, tem 74% dos domicílios em aglomerados subnormais. Em Belém e Manaus, mais de 50% das habitações estão em ocupações irregulares. Em seguida vem Salvador, com 41,8%.

Esse é o resultado de décadas de falta de planejamento urbano, excesso de leis ambientais, elitização de códigos de obras e intransponível burocracia dos órgãos de aprovação. Faltam 7,7 milhões de moradias no País, também segundo o IBGE. Além disso, estudo da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), revela que o déficit habitacional vem aumentando, principalmente a partir de 2013.

Assim, além dos esforços já empreendidos pela União, por Estados e municípios, novas políticas públicas de incentivo ao capital privado são necessárias no setor. É preciso, ainda, alterar em termos estruturais e conceituais os planos diretores dos grandes municípios, para que volumosos contingentes populacionais deixem áreas de risco e tenham condições adequadas de moradia. As mais avançadas tendências relativas à ocupação do solo urbano recomendam maior adensamento, recuperação dos espaços centrais para habitação e revisão dos protocolos de verticalização das construções.

Soluções existem, como se observou recentemente na capital paulista, com a aprovação da Lei do Retrofit (n.º 17.577/2021), que estabelece incentivos fiscais e construtivos para o reaproveitamento de imóveis na região central da cidade. A ideia é boa, possibilitando o reagrupamento habitacional em regiões já dotadas de infraestrutura de transportes, comércio, serviços, saúde e escolas. Entretanto, trata-se de uma gota d’água num oceano demográfico, em razão da dimensão do problema. Para que a falta de moradia digna seja minimizada, é preciso haver rapidez na análise e na aprovação de projetos, legislações de uso e ocupação do solo mais amigáveis e muito incentivo pelo Estado.

Num olhar para todo o País, encontra-se em formulação a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), ainda incipiente. Seus propósitos são pertinentes, pois o plano pode estabelecer parâmetros para ações mais efetivas das unidades federativas: reduzir as desigualdades socioespaciais nas escalas intraurbana e supramunicipal, fornecendo apoio, suporte técnico e subsídios nessa área aos municípios.

Em razão das mesmas causas referentes ao déficit habitacional, cerca de 100 milhões de brasileiros não dispõem de rede de coleta de esgoto e 35 milhões não têm acesso a água encanada e potável. É o que mostra o Instituto Trata Brasil. As pessoas e famílias sem casa digna e saneamento básico também se encontram, em grande parte, alijadas da proteção do Estado, submetidas à “lei” do crime organizado, com dificuldades de acesso a trabalho decente e a escolas adequadas para os filhos. São milhões de habitantes não inseridos nos direitos previstos na Constituição, vivendo à margem das prerrogativas da cidadania e da democracia. É um contingente de habitantes invisíveis ou inexistentes para o poder público.

A cada eleição, como teremos este ano para presidente da República, governadores, senadores, deputados federais e estaduais, renasce a expectativa de que o voto possa resgatar os direitos essenciais do ser humano. Mais do que nunca, depois dos duros golpes e lições da pandemia, os eleitos terão a imensa responsabilidade de realizar políticas públicas mais realistas de produção imobiliária, priorizando os segmentos da população menos favorecidos, de modo que milhões de brasileiros deixem de viver como se fossem refugiados em seu próprio país.

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DIRETOR DA SOBLOCO CONSTRUTORA, É MEMBRO DO CONSELHO CONSULTIVO DO SECOVI

Opinião por Luiz Augusto Pereira de Almeida