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Opinião|Os fatos vão além da peste

Bolsonaro vê a Presidência como exibição de poder pessoal

Atualização:

O Brasil já viveu momentos difíceis, mas nunca uma crise tão vasta e profunda como agora, em que a devastação sanitária se une à insanidade política.  Nada surge do nada, porém. Nem as nuvens que parecem viajantes perenes, sem origem ou destino. A data de 1.º de maio, por exemplo, não tem, neste 2020, o estilo de reivindicação do Dia do Trabalho. O horror do coronavírus desmobiliza tudo, do lar à economia, e nos leva a novo olhar sobre a vida. Improvisamos hábitos para fugir à peste e à morte. Reivindicar no 1.º de maio seria aglomerar-se, algo impensável em quarentena e isolamento, quando o contágio ataca como inimigo invisível. No Brasil, como se não bastasse o novo vírus, o presidente da República provoca uma múltipla crise, que, primeiro, força a demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e, logo, a de Sergio Moro do Ministério da Justiça.

Ambos os casos mostram a predisposição ditatorial (consciente ou não) de Bolsonaro. Resta saber se é um plano político ou se é mera consequência do desequilíbrio do presidente, como entende o jurista Miguel Reale Júnior. O autor do pedido de impeachment de Dilma Rousseff chega a sugerir, até, que o presidente se submeta a um exame de “sanidade mental” para permanecer no poder. A demissão de Mandetta surgiu do ciúme do presidente, que preferia um ministro inerte a alguém que descesse do pedestal e dialogasse com a população. Bolsonaro viu a Presidência como mera exibição de poder pessoal, não como ato de servir ao País e ao povo.

A demissão de Moro foi ainda mais brutal. O juiz que, pela primeira vez no Brasil, levou à prisão grandes ladrões enquistados no empresariado e na política, não teve condições de continuar no governo que prometia fazê-lo “superministro” para combater a corrupção. Em menos de 16 meses Sergio Moro foi relegado à sarjeta ao relutar em transformar a Polícia Federal em obediente criadagem da prole presidencial.

O próprio Moro revelou que o presidente queria mudar o diretor da Polícia Federal (lá colocando alguém de sua confiança pessoal) para ter acesso à marcha das investigações. E as investigações chegam a um dos filhos do presidente… No momento em que a catástrofe da covid-19 afeta o planeta, aqui o presidente da República se dedica a derrubar a estrutura do próprio governo que formou. O absurdo vai além: Bolsonaro ressuscita notórios corruptos condenados no mensalão e na Lava Jato e os transforma em escoras políticas. É o caso do chefão do PTB, Roberto Jefferson, que na era Collor comandou a “tropa de choque” e, com Lula, se incriminou ao delatar o mensalão, do qual foi beneficiário.

Sem se amparar na maioria dos eleitores que o elegeram de boa-fé (ao acreditarem que combateria a corrupção), Bolsonaro age no sentido oposto. Busca apoiar-se no “centrão”, que reúne no Parlamento variados arrivistas. Quando deputado e membro do chamado “baixo clero” da Câmara, Bolsonaro tinha livre acesso a esse grupo e hoje aprofunda o tosco contubérnio.

Tal qual os rios vão para o mar, a barafunda desemboca na nomeação de André Mendonça como ministro da Justiça e na de Alexandre Ramagem, velho amigo da família Bolsonaro, como diretor-geral da Polícia Federal. Concluía-se o arco idealizado pelo presidente?

Ao pular da Advocacia-Geral da União para o Ministério da Justiça, Mendonça (que é pastor presbiteriano) amplia a credencial para ser o futuro ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) “tremendamente evangélico” mencionado por Bolsonaro tempos atrás. Ramagem seria a figura íntima que informaria o presidente sobre a investigação em torno do filho. Confirmava-se a revelação de Moro ao deixar o Ministério.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, interrompeu a festança ao suspender a nomeação de Ramagem, interpretando-a (de fato) como tentativa de obstrução de Justiça. O caso era similar à nomeação de Lula da Silva como chefe da Casa Civil da então presidente Dilma, que o STF impediu por ser mera manobra. Ciente de que o plenário do Supremo acataria a liminar de Moraes, de imediato Bolsonaro retrocedeu, anulou a nomeação de Ramagem e o recolocou na Abin, órgão de inteligência subordinado à Presidência. A posse de André Mendonça no Ministério da Justiça completou-se, em Brasília, num misto de velório, culto religioso e carnaval, com o novo ministro chamando Bolsonaro de “profeta”.

Nessa balbúrdia, enquanto em São Paulo, Manaus e onde for a peste faz improvisar hospitais e cavar sepulturas à espera de doentes ou cadáveres, o Supremo Tribunal julgará o pedido do procurador-geral para investigar o presidente por crimes de falsidade ideológica, coação, prevaricação e obstrução de Justiça, a partir das revelações de Moro. O próprio ex-ministro será investigado por eventual “calúnia” e “crime contra a honra” pelo que disse ao sair.

A realidade substitui, com vantagem, todo comentário ou previsão. Os fatos mostram além da peste.

JORNALISTA E ESCRITOR, PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA 2000 E 2005, PRÊMIO APCA 2004, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA