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Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Os itinerários do novo ensino médio

Felizmente, as escolas não são obrigadas a se organizar conforme as ‘áreas’ do MEC...

Atualização:

Em 2022, finalmente, o ensino médio brasileiro deverá começar a adotar o novo formato estabelecido pela reforma de 2017. A ideia continua importante. Em vez de um currículo tradicional, rígido e amarrado às provas do Enem, criar alternativas diferentes de formação conforme os interesses e as condições dos milhões de jovens que chegam ao ensino médio. Ao invés de dificultar a formação profissional, torná-la mais acessível, como uma das alternativas de formação nesse nível. É assim em todo o mundo.

Mas como fazer isso? Na falta de uma orientação clara da parte do governo federal, as Secretarias de Educação, escolas e redes de ensino estão procurando alternativas, no meio ao emaranhado de leis, bases curriculares, resoluções, diretrizes e o novo palavreado introduzido pelo MEC e pelo Conselho Nacional de Educação nos últimos anos – itinerários formativos, formação integrada, projetos de vida, diversificação, competências, mediação sociocultural, empreendedorismo...

Parte da confusão a ver com uma estranha classificação das áreas de conhecimento adotada pelo Ministério da Educação, tirada não se sabe de onde, que acabou entrando na base nacional curricular e na lei como definidora dos diferentes itinerários de formação. Essas áreas seriam “linguagens” (uma salada que inclui inglês, educação física, dança, língua portuguesa e tecnologias de informação), “ciências da natureza”, “ciências humanas” e “matemática”, cada uma (menos as ciências humanas) com “suas tecnologias”. A interpretação literal da legislação indica que essas áreas deveriam ser também os “itinerários formativos” a serem oferecidos, sobrando ainda um “quinto itinerário”, que seria o da educação técnica ou profissional.

Basta olhar o que fazem outros países para ver que isso não faz sentido. Em Portugal e na França, por exemplo, existem pelo menos três modalidades diferentes de ensino médio, cada uma oferecendo diferentes opções. A primeira é o que se chama de “propedêutica”, de preparação para os cursos universitários. A segunda é a formação tecnológica, voltada para atividades profissionais mais complexas no mundo dos serviços, da indústria e das novas tecnologias. E a terceira é a formação denominada “vocacional”, mais simples e diretamente orientada para o mercado de trabalho.

Na França, a primeira modalidade, que culmina nas provas do “baccalauréat générale”, inclui três opções: ciências naturais, ciências econômicas e sociais e literatura. Em Portugal, as opções são ciência e tecnologia, ciências socioeconômicas, línguas e humanidades e artes. O que essas áreas têm em comum é que elas são internamente coerentes e preparam os alunos para os tipos de formação universitária e vida profissional que pretendem seguir. Ninguém se forma em “linguagens e suas tecnologias”; a matemática nunca vem sozinha, mas sempre junto com a tecnologia, as ciências naturais e sociais; e existe uma clara separação entre as ciências sociais e as humanidades. Uma leitura mais atenta da lei brasileira mostra que, felizmente, as escolas não são obrigadas a se organizar conforme as “áreas” do MEC e podem criar itinerários integrados semelhantes aos que existem no resto do mundo. É o que deve ser feito.

Das outras duas modalidades, o que no Brasil se chama de “educação técnica”, com quase 200 opções diferentes listadas num catálogo feito pelo MEC, é mais parecido com os cursos vocacionais europeus do que com os cursos de conteúdo tecnológico, que ficaram esquecidos – embora o termo “tecnológico” seja utilizado entre nós para denominar os cursos superiores curtos, quaisquer que sejam os seus conteúdos. Em outros países, o que dá robustez à formação tecnológica, oferecida desde o ensino médio, é que ela é mais prática e aplicada do que a formação acadêmica, desenvolve-se em parceria com o setor produtivo e dá acesso a cursos superiores de curta duração, para quem quiser continuar se aperfeiçoando, em áreas como ciência e tecnologia da saúde e bem-estar social, agronomia, design e artes plásticas, atividades industriais, alimentação e gestão e outras. Os cursos vocacionais são mais simples, voltados, sobretudo, para atividades de serviço e manutenção, e destinados a pessoas que necessitam trabalhar de forma mais imediata e não têm condições de seguir cursos mais complexos.

A outra característica importante do ensino diversificado no resto do mundo é que não se trata, simplesmente, de diferentes arranjos curriculares, mas de escolas públicas e privadas que se especializam em determinadas áreas e tipos de formação. Algo disso já existe no Brasil, com algumas redes de escolas técnicas como as do Sistema Paula Souza e do Sesi-Senai, ou a escola ORT, no Rio de Janeiro. A decisão sobre que itinerários formativos oferecer é também uma decisão sobre como as escolas do ensino médio deverão reorganizar-se, identificando as características e necessidades de seus alunos, buscando parcerias e se capacitando para melhor atendê-los.

É só um primeiro passo.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Opinião por Simon Schwartzman
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