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Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Simon Schwartzman escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|‘Para não esquecer’

É na reforma política e institucional que devemos buscar o caminho para não persistir nos erros de sempre.

Atualização:

O Brasil não é atrasado por acaso. Em quase 800 páginas, Marcos Mendes e 32 colaboradores fazem uma autópsia minuciosa de 24 políticas econômicas e sociais que, nos últimos 20 anos, levaram à insolvência do Estado, à estagnação econômica e à persistência da pobreza. Os temas são os incentivos fiscais, créditos direcionados, protecionismo econômico, empresas estatais, previdência social e educação, entre outros.

A corrupção é mencionada, mas o que mais preocupa são políticas que, mesmo quando bem intencionadas, resultam de concepções erradas sobre a capacidade do setor público de intervir e comandar a economia; políticas que não se baseiam em análises adequadas dos problemas que se tenta resolver; e a falta de mecanismos de acompanhamento de resultados e correção de erros. Em comum, essas políticas compartem a ideia de que são os gastos públicos, não a produtividade, que criam riqueza; que os recursos públicos são infinitos; atendem a grupos ou setores mais articulados, cujos interesses acabam prevalecendo sobre os da grande maioria que não consegue se organizar; e, uma vez implantadas, tendem a persistir, mesmo quando sua ineficiência e seus efeitos negativos se tornam evidentes.

Minha contribuição para o livro foi o capítulo sobre a expansão da educação superior, cujas matrículas passaram de 2,7 milhões para 8 milhões entre 2000 e 2015. Não é que a expansão não fosse necessária: o número de pessoas com formação superior no Brasil é ainda pequeno, há uma busca crescente, da população, pelos empregos e o reconhecimento social trazidos pelos títulos superiores, e o País precisa de profissionais mais competentes. Mas pretender dar “universidade para todos” é simplesmente vender ilusões, a alto preço.

Nos países desenvolvidos, a proporção de pessoas com diploma superior dificilmente passa de 40%, e isso graças a uma combinação de universidades tradicionais, grande oferta de cursos profissionais curtos e a existência de um amplo sistema de educação superior básica, como os community colleges de 2 anos ou 4 anos nos Estados Unidos e o ciclo inicial de 3 anos do Modelo de Bolonha na Europa. No Brasil, as escolas técnicas federais, que poderiam ter sido o embrião de um amplo sistema público de formação profissional, foram transformadas em institutos semelhantes às universidades federais, concebidas como instituições elitistas nos anos 60, que custam cada vez mais e mal conseguem atender a 20% das matrículas. O setor privado, que cresceu por atender como seja à demanda da sociedade por mais educação, passou a ser subsidiado por isenções fiscais e um sistema de crédito educativo garantido pelo governo que cresceu exponencialmente até explodir. Tudo isso em cima de um ensino médio precário, em que metade ou mais dos alunos terminam sem um mínimo de competências em leitura, Matemática e Ciências.

O resultado foi um sistema inchado, em que milhões se candidatam todos os anos às 300 mil vagas do sistema federal, os que não passam desistem ou se matriculam no sistema privado, cerca de metade abandona antes de terminar e mais da metade dos que se formam acaba trabalhando em atividades de nível médio.

Outros capítulos tratam do sistema de financiamento da educação básica, o Fundeb; do piso nacional dos professores; e do Pronatec, o programa de apoio à educação técnica e profissional. Em todos, existia uma boa intenção inicial, que acabou sendo desvirtuada em todo ou parte pela falta de objetivos claros, de análise adequada e de acompanhamento de resultados e pela captura dos recursos disponíveis por determinados setores, em detrimento do interesse geral. Ficou faltando, ainda, nesta lista o programa Ciência Sem Fronteiras, em que cerca de R$ 10 bilhões foram gastos em poucos anos em bolsas no exterior sem maior benefício para o País.

Em toda parte, políticas públicas são objeto de grupos de interesse, e as pressões de cada dia dificultam o planejamento e as políticas públicas de longo prazo. Mas, nos países que conseguem se desenvolver, a capacidade técnica do Poder Executivo de elaborar políticas públicas de qualidade e acompanhar seus resultados é protegida do vaivém dos lobbies e da política do dia a dia por um sistema adequado de negociação, equilíbrio e separação entre os Poderes. Nesses países, também, a intervenção do Estado na economia tende a ser limitada e o sistema legal garante a estabilidade e a previsibilidade da iniciativa privada.

Vários setores da administração pública brasileira têm hoje capacidade técnica semelhante à dos países desenvolvidos, mas grande parte da máquina pública é ainda capturada por grupos de interesse. A fragmentação do sistema partidário impede que o Executivo tenha sustentação para políticas de longo prazo, e as incertezas jurídica, financeira e tributária fazem com que grande parte do setor privado dependa de favores e privilégios dos governos, mais do que de sua produtividade, para sobreviver. É na reforma política e institucional, em última análise, que devemos buscar o caminho para não persistir nos erros de sempre.

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SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Opinião por Simon Schwartzman
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