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Opinião|Paz e superação da perversão

‘Nunca mais a guerra’, conclamou Paulo VI na ONU, em 1968. Mas seu apelo foi logo ignorado

Atualização:

O 1.º de janeiro é celebrado pela Igreja Católica como Dia Mundial da Paz e o papa dirige todos os anos uma mensagem aos governantes e à própria Igreja Católica, abordando algum aspecto importante da questão da paz. É difícil imaginar que alguém não deseje a paz para si, mesmo quando promove atos contrários à paz dos outros. Ela é um bem precioso, que não se tem por uma fórmula mágica; sua edificação e preservação requerem o esforço sábio e paciente de todos.

Francisco emprega um conceito pesado para definir a origem dos conflitos e guerras: perversão nas relações humanas. A perda da paz, geralmente, tem que ver com a soberba e a vontade de dominar sobre os outros, ou com ambições desmedidas, ganância e com a quebra da fraternidade entre os seres humanos. Conflitos sociais muitas vezes são alimentados por preconceitos ideológicos, que levam à rejeição daquele que é diverso, que pensa diversamente ou tem outros valores. A necessidade morbosa de classificar as pessoas entre boas ou más, entre amigas e inimigas, entre quem pode existir e quem deveria deixar de existir e as polarizações ideológicas fundamentalistas são sintomas de relações sociais e políticas pervertidas e de uma cultura enferma, contagiada pelo vírus da violência.

A convivência construída sobre o ódio ou o medo do outro prepara o terreno para constantes explosões de violência e também de guerras entre povos. Na convivência marcada pelo medo do outro vive-se de sobressaltos ante a preocupação pelo mal que os outros nos possam causar, ou porque alguém poderia tomar o que nos pertence. Vive-se com medo diante do risco de destruição que os avanços tecnológicos poderiam significar quando não são administrados sabiamente. Teme-se a destruição do meio ambiente por causa dos da relação predatória e inconsequente do homem com a natureza.

Em sua mensagem, o papa retoma palavras proferidas em sua recente visita a Nagasaki, durante a viagem ao Japão, em novembro de 2019: “A paz e a estabilidade internacional são incompatíveis com qualquer tentativa de as construir sobre o medo da mútua destruição, ou sobre uma ameaça de aniquilamento total. Somente uma ética global da solidariedade e da cooperação, posta a serviço de um futuro modelado pela interdependência e corresponsabilidade na família humana inteira, de hoje e de amanhã, pode afastar o medo e assegurar a paz”. Essa ética da solidariedade global levará a superar a indiferença diante dos outros, a desconfiança e o medo, para se empenhar na edificação de uma fraternidade real entre pessoas e povos.

A afirmação de interesses hegemônicos e a vontade de aniquilamento ou sujeição do outro são atitudes contrárias à paz. E aí Francisco toca num ponto nevrálgico da antropologia cristã, segundo a qual todos os seres humanos possuem a mesma dignidade, são filhos amados de Deus e fazem parte de uma única grande família de irmãos. “É preciso abandonar o desejo de dominar os outros e aprender a se olhar mutuamente como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos.” Somente por essa escolha é possível abandonar o caminho da vingança e olhar para o futuro com esperança.

O caminho da paz é complexo e cheio de tropeços, observa Francisco. E quem não concordaria com ele? Há múltiplos interesses em jogo nas relações entre as pessoas, comunidades e nações e por isso “só se pode chegar verdadeiramente à paz quando houver um diálogo convicto de homens e mulheres interessados na verdade, para além das ideologias e das diferentes opiniões”. A paz precisa ser edificada na base da lealdade à palavra dada, no respeito ao direito e à justiça e na busca do bem comum, mais que do interesse de parte.

Se isso vale para as relações sociais, vale também no campo econômico, político e cultural, pois a paz permeia todas as dimensões da vida pessoal e comunitária. Vale para as relações internas dos países e para as relações entre os povos. Um dos maiores desafios para alcançar a paz é a edificação de uma ordem econômica justa. No mundo assistimos, nestes últimos anos, a um enorme fluxo migratório forçado pela pobreza, pela violência e pelas condições sub-humanas de existência de inteiras nações. São as massas deserdadas do progresso e do bem-estar, que forçam as portas dos países desenvolvidos para participar da riqueza e do bem-estar demasiadamente concentrados.

Também no Brasil há muito que fazer para alcançar uma ordem social e econômica mais justa. Há uma enorme concentração de renda e de oportunidades numa faixa pequena da população e essa situação não se resolve mediante a polarização política e o acirramento ideológico, semeando ódio e pondo em risco a paz social. A solução passa pelo diálogo honesto e respeitoso, no qual os que têm opinião diferente não precisem ser tratados como inimigos a serem vencidos e eliminados, mas como potenciais colaboradores, com contribuições diversas a dar para a edificação do bem comum.

A paz é fruto de um processo educativo e cultural, que se prolonga no tempo e requer empenho, paciência e perseverança. O papa fala da necessidade de cultivar a memória como parte do paciente e tenaz processo de cultura da paz. Preservar a memória histórica dos horrores e destruição, das vítimas e seus sofrimentos que as guerras ou convulsões sociais sangrentas produziram ajuda a prevenir novos conflitos e a envidar esforços pela paz.

“Nunca mais a guerra”, conclamou com voz embargada o papa Paulo VI em seu memorável discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1968, ao se dirigir aos chefes das nações e desafiá-los a evitarem, de todas as formas, novas guerras. Seu apelo, porém, foi logo ignorado e, depois daquele dia, dezenas de guerras voltaram a semear dor, destruição e morte pelo mundo.

Haverá jeito de superar a perversão das relações humanas, que leva a fazer guerra ao outro?

CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO

Opinião por Dom Odilo P.Scherer